Em meio a tensões internas Ucrânia teme perda de apoio de países ocidentais
Nada vai bem para a Ucrânia neste momento. Ao mesmo tempo em que o apoio dos países ocidentais à Kiev começa a vacilar, divisões surgem dentro da classe política e militar ucraniana. As relações entre o presidente Volodymyr Zelensky e o seu comandante-chefe Valéri Zalouzhny são tensas. Enquanto isso, o exército russo continua seus ataques à cidade de Avdiïvka, em Donbass, e está prestes a cercar esta cidade industrial perto de Donetsk.
O debate sobre política, que se mantinha discreto desde o começo da guerra, em 24 de fevereiro de 2022, começa a recuperar força, num momento em que o Exército ucraniano prorrogou sua contraofensiva.
Mesmo que o presidente Volodymyr Zelensky tenha descartado a possibilidade de organizar eleições num futuro próximo, as discussões e conchavos políticos foram retomados.
O governo ucraniano é atualmente criticado tanto pela oposição quanto por seus próximos. “Já não é com tristeza, mas com horror que olho para o que está acontecendo na nossa política nos dias de hoje. Uma espécie de epidemia de conflitos internos que só está piorando”, observa o cientista político ucraniano Volodymyr Fesenko, diretor do centro Penta.
Críticas do prefeito
Uma das críticas mais virulentas contra Zelensky foi feita pelo prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, que teria ambições presidenciais. No jornal alemão Der Spiegel, ele defende que a Ucrânia caminha para o autoritarismo e que poderá deixar de ser diferente da Rússia, onde “tudo depende dos caprichos de uma pessoa”.
No final da semana passada, o ex-presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, agora deputado da oposição, foi impedido de deixar o país para participar de uma séria de reuniões, incluindo, uma com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban.
Os serviços de segurança ucranianos viram um risco de “instrumentalização pelos russos”. Segundo eles, Moscou pretendia aproveitar um encontro entre Petro Poroshenko e Viktor Orban, acusado de ser “anti-ucraniano”.
“O cansaço da guerra é sentido e se traduz na sociedade: quem é o responsável pela situação? Por que a contraofensiva falhou? Os políticos sentiram que havia descontentamento na sociedade e isso os levou a criticar cada vez mais o presidente”, observa Volodymyr Fesenko.
Responsabilidades
A questão da responsabilidade pelo fracasso da contraofensiva também reacendeu a oposição entre os dois homens mais populares do país: o presidente Zelensky e o general Valéri Zaluzhny, comandante-chefe das Forças Armadas ucranianas. Na semana passada, o jornal The Economist, citando uma fonte ucraniana de alto escalão, disse que as relações entre os dois eram “execráveis”.
O jornal online Ukrainska Pravda dedica um artigo à disputa entre o presidente e o militar. Ele diz que Volodymyr Zelensky criou linhas paralelas de comunicação com os comandantes das forças terrestres, Oleksandr Syrskyi, e da força aérea, Mykola Oleschuk, deixando de fora o general Zaluzhny. Além disso, o chefe das Forças Armadas não teria sido informado da decisão do governo de demitir o general Viktor Khorenko, chefe das forças especiais, e teria tomado conhecimento dela pela imprensa.
Rumores sobre o distanciamento entre o chefe de Estado e o general têm circulado desde o primeiro semestre de 2022, mas a crise teria se intensificado com a visita do chefe do Pentágono, Lloyd Austin, a Kiev, há duas semanas. A administração presidencial não gostou das declarações do oficial superior, que reconheceu que a contraofensiva estava num impasse e que a guerra poderia durar anos.
Em uma entrevista ao tabloide britânico The Sun, Volodymyr Zelensky alertou o oficial superior: “com todo o respeito que tenho pelo General Zalouzhny e por todos os comandantes no campo de batalha (…), só existe uma hierarquia, segundo a lei, e em tempos de guerra isso nem sequer pode ser discutido”.
Demissão arriscada
Neste contexto de tensões, existem rumores sobre uma demissão do comandante. Mas a decisão acarretaria riscos políticos a Zelensky. “Se ele fosse despedido, ele se tornaria a principal alternativa a Zelensky”, explica o cientista político Volodymyr Fessenko.
Os militares, hoje ausentes da política, “poderiam então ser pressionados a entrar no governo e seriam capazes de reunir as forças da oposição. Nesta situação, Zelensky teria um concorrente real e muito poderoso.”
De acordo com uma sondagem realizada em novembro pelo Kiev Rating Group, no segundo turno das eleições presidenciais, Volodymyr Zelensky obteria 42% dos votos, em comparação com 40% para Valéri Zalouzhny. Nesta mesma pesquisa, 82% dos entrevistados disseram confiar no chefe do Exército, o presidente recebeu apenas 72% dos votos.
Contraofensiva falida
A grande contraofensiva ucraniana lançada em junho fracassou em grande parte na libertação dos territórios ocupados no Leste e no Sul, gerando questões sobre a continuação da ajuda dos países ocidentais.
Apesar dos ganhos registrados no mar Negro, permitindo a Kiev exportar várias toneladas de produtos agrícolas, a situação militar na frente terrestre parece agora congelada, sem qualquer solução tática real à vista a curto prazo. Kiev, no entanto, garante que pode vencer se a ajuda militar ocidental continuar.
O estado de ânimo dos ucranianos também não é o mesmo, cansados desta guerra. Mas no terreno o discurso dos soldados não muda.
Embora a guerra seja muito cara, “os europeus nunca deixarão a Ucrânia cair porque estão cientes de que se (Vladimir) Putin tomar a Ucrânia, seria um precedente extremamente perigoso” com riscos para os países bálticos e para a Polônia, estima Tatiana Kastouéva-Jean, especialista do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri) à AFP.