Uma reforma tributária para homenagear a Constituição
Por Dão Real Pereira dos Santos
O auditor fiscal analisa a aprovação da primeira parte da reforma tributária e alerta para a necessária reforma sobre a renda para reduzir a desigualdade
A melhor forma de homenager os 35 anos da Constituição é construir um sistema tributário progressivo, que tribute mais os mais ricos e menos os mais pobres. Esta é a segunda parte da reforma a ser feita. Para isso é preciso revogar a isenção dos lucros e dividendos e os juros sobre o capital próprio, corrigir o limite de isenção para desonerar as baixas rendas e reorganizar a tabela do Imposto de Renda, com a inclusão alíquotas marginais mais elevadas para altas rendas. É preciso também desobstruir o caminho para a implementação do Imposto sobre as Grandes Fortunas
A tributação é um dos principais instrumentos para viabilizar o projeto constitucional. No entanto, apesar da Constituição estar em vigor há mais de três décadas, seus fundamentos continuam sendo atacados e disputados permanentemente.
A Constituição Federal, de 1988 completou 35 anos em outubro, estabeleceu as bases para a construção de um Estado social que consta no Artigo 3º, nos compromissos de construir uma sociedade justa, livre e solidária, promover o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos. Portanto, o projeto nacional de Estado, de desenvolvimento e de sociedade não deveria ser objeto de divergências políticas.
Diferentemente do que fizeram os países que instituíram seus Estados sociais, a maioria no final da década de 1940, a tributação no Brasil andou no sentido oposto às diretrizes constitucionais e isso explica porque ainda não conseguimos cumprir integralmente nenhum daqueles objetivos, mesmo que tenhamos avançado na universalização das políticas sociais. O necessário crescimento dos gastos públicos veio acompanhado do crescimento da carga tributária sobre os mais pobres e do alívio tributário para os mais ricos.
Os ataques à Constituição começam desde a sua promulgação, em outubro de 1988, e se concretizam principalmente em mudanças no sistema tributário. Os compromissos firmados na Constituição exigiam um sistema tributário progressivo que onerasse mais os mais ricos e menos os mais pobres e, neste sentido, a tributação sobre a renda deveria cumprir uma função essencial. Os constituintes sabiam disso, tanto que criaram até mesmo a possibilidade de se instituir um imposto sobre as grandes fortunas, o IGF, que, curiosamente, é o único tributo da Constituição que nunca foi implementado.
Já em 1989, o Imposto de Renda da pessoa física começou a ser esvaziado em sua progressividade. As sete alíquotas, que havia, foram reduzidas para apenas duas e a alíquota máxima foi reduzida de 45% para 25%. Em 1995, com a Lei 9.249, os lucros e dividendos passaram a ser isentos de imposto e foi também criada a possibilidade de dedução da despesa fictícia de juros sobre o capital próprio, fazendo com que as rendas dos mais ricos deixassem de ser tributadas. Em 2022, por exemplo, tivemos mais de meio trilhão de Reais distribuídos sem pagar nenhum centavo de Imposto de Renda.
A partir de 1995, a tabela do Imposto de Renda deixou de ser atualizada, de forma que, a cada ano, rendas cada vez mais baixas passaram a pagar imposto. A tabela ficou praticamente congelada, exceto no período entre 2005 e 2015, acumulando, até 2021, uma defasagem que ultrapassa a 145%. Com o congelamento da tabela e a desoneração das altas rendas, as alíquotas efetivas dos contribuintes de rendas mais baixas se elevaram durante este período, enquanto as alíquotas das altas rendas diminuíram. De 2007 a 2020, contribuintes com rendas de até cinco salários-mínimos mensais tiveram uma elevação de mais de 1000% em sua alíquota efetiva, enquanto aqueles com rendimentos superiores a 80 salários-mínimos tiveram redução de suas alíquotas no período. Além disso, a desoneração da maior parte das rendas dos mais ricos, pela isenção dos lucros e dividendos, faz com que as alíquotas efetivas das altas rendas sejam inferiores às alíquotas das rendas mais baixas.
O deslocamento da tributação para o andar de baixo se deu também pela elevação da carga tributária sobre o consumo, que ocorreu tanto pela elevação de alíquotas como pela necessidade de compensação da desoneração das exportações de produtos primários, promovida pela Lei Kandir, de 1996.
Em relação à Lei Kandir, é importante observar que a Constituição autorizava a incidência do ICMS[i] sobre a exportação de produtos primários e semielaborados, o que se alinha com o propósito da industrialização. Em 1996, por conta de problemas de balança de pagamentos e de aumento de endividamento externo, decorrentes do Plano Real, foi aprovada a Lei Complementar 87 (Lei Kandir), desonerando completamente do ICMS todas as exportações, inclusive de produtos primários. Os problemas que justificaram essa medida desapareceram desde 2002, no entanto, a Lei Kandir acabou sendo constitucionalizada, contribuindo para o processo de desindustrialização do País.
Evidentemente que a quase universalização da educação básica e do sistema de saúde e a ampliação do sistema de previdência implicou elevação da carga tributária. Em 1988, nossa carga era de aproximadamente 23% do PIB, mas chegou à faixa de 33% no início dos anos 2000, permanecendo neste patamar desde então. Os gastos primários, que representavam 12% do PIB, em 1990, chegaram a quase 20% do PIB, em 2015.
Por outro lado, a insistente regressividade do sistema tributário constitui fator determinante de obstáculo à concretização do Estado social e da sociedade que estavam projetados nos objetivos constitucionais. Como reduzir as desigualdades, erradicar a pobreza e a marginalização com uma tributação regressiva? Como promover o desenvolvimento nacional retirando parcelas importantes da renda com maior propensão ao consumo? Como industrializar o país promovendo desonerações cada vez maiores para a exportação de matérias-primas?
O afastamento da estrutura tributária dos objetivos e princípios constitucionais decorre, fundamentalmente, do fato de que esse instrumento de política sempre esteve alinhado aos interesses dos setores inconformados com a ideia de um Estado de bem-estar social e que vêm protagonizando diversas campanhas ostensivas contra os tributos e de depreciação das políticas públicas, em defesa de um Estado mínimo.
Se, por um lado, há consenso na sociedade de que uma reforma tributária é necessária, por outro, não há acordo sobre os problemas que precisam ser corrigidos. Defensores da Constituição e do Estado social veem na reforma tributária a possibilidade de ajustar a tributação para acelerar a sua implementação. Já os defensores do Estado mínimo vislumbram na reforma a oportunidade de cercear a capacidade do Estado na promoção das políticas públicas, bem como de interferir na atividade econômica.
As distintas concepções sobre o papel do Estado, sobre o modelo de desenvolvimento e de sociedade determinam propostas e prioridades diferentes. A PEC 45, de 2019, foi priorizada pelo mercado, pelo parlamento e pelo próprio governo, como primeira etapa da reforma tributária. Essa proposta de emenda constitucional não altera a estrutura regressiva do sistema tributário, não corrige as distorções produzidas na tributação da renda a partir no início dos anos 1990, nem implementa o Imposto sobre Grandes Fortunas.
A PEC45 visa à simplificação da tributação sobre o consumo, com o claro objetivo de reduzir os custos para o setor empresarial, melhorando o ambiente de negócios, como alegam seus defensores. Essa simplificação seria decorrente da unificação de cinco tributos em apenas um, de caráter dual. O IPI[ii], o PIS e a COFINS[iii], da União, o ICMS, dos estados, e o ISS[iv], dos municípios, serão extintos. No lugar deles, teremos a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), da União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), dos estados e municípios.
Esses dois tributos constituem um Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), de caráter dual. Trata-se de um tributo que incide apenas no destino, dividido, parte para a União e parte para os estados e municípios. Terá uma única base de cálculo, incidência ampla sobre todos os bens e serviços, com incidência no destino e totalmente não cumulativo.
A PEC 45 conta com amplo apoio do setor empresarial, pois implicará, sem dúvida, redução significativa dos custos administrativos e, devido à não cumulatividade plena, também dos custos tributários. Isso porque, nenhum tributo ficará incorporado à atividade econômica. Todos os tributos incidentes ao longo de uma determinada cadeia de negócios serão transferidos para os consumidores finais e, no caso de exportação, serão devolvidos integralmente às empresas.
Além das características já citadas para esses novos tributos, algumas outras premissas devem consideradas. A neutralidade é uma delas, que se materializa em alíquotas uniformes e niveladas para todos os bens e serviços, permitindo-se apenas diferenciação de alíquotas promovidas pelos estados e municípios, em função do destino dos produtos e serviços, mas sem variação por produtos ou serviços. Além disso, a esses tributos não se poderá conceder benefícios fiscais nem regimes especiais.
Durante a tramitação da proposta no Câmara dos Deputados, muitas exceções foram incorporadas ao texto original. A Zona Franca de Manaus e o Simples Nacional foram preservados como regimes especiais. Além disso, foi admitida a possibilidade de redução de 60% ou de 100% das alíquotas para situações elencadas no texto, tais como, produtos e serviços de saúde, de educação, de transporte, alimentos, insumos agropecuários e outros. Também foi estabelecida a criação de uma cesta básica nacional de alimentos, cujas alíquotas da CBS e do IBS serão zeradas.
Outra exceção à regra geral foi a possibilidade de criação de regimes específicos de tributação para combustíveis, serviços financeiros, operações com imóveis, planos de saúde, compras governamentais e cooperativas. Nos últimos momentos da tramitação foi também incorporada a possibilidade de os estados instituírem uma Contribuição sobre produtos primários e semielaborados, para financiar obras de infraestrutura e habitação.
Juntamente com o fim do IPI e do ICMS será extinto o princípio da seletividade, que permite variação de alíquotas em função da essencialidade dos produtos. A PEC 45 autoriza a instituição de um Imposto Seletivo (IS), para incidir sobre produtos que causem danos à saúde e ao meio-ambiente, mas esse tributo não poderá ser aplicado sobre produtos que tenham sido beneficiados com alguma redução de alíquotas de CBS e IBS.
A seletividade pela essencialidade é que permite tanto aos estados como à União instituírem alíquotas mais elevadas para produtos supérfluos, por exemplo. Atualmente, diversos produtos estão sujeitos a cargas tributárias superiores a 60%, tais como, bolsas de pele, perfumes importados, jogos eletrônicos, motos de elevada cilindrada, armas e munições, além dos produtos de fumo e bebidas alcoólicas. O PIS e a COFINS também podem ter alíquotas diferenciadas em função do setor econômico.
Em nome da neutralidade, nem a CBS nem o IBS poderão ter alíquotas diferenciadas em função de produtos, serviços ou setor econômico, salvo os casos estabelecidos como exceções na Constituição. Ou seja, a capacidade do Estado de utilização do instrumento tributário para induzir a atividade econômica ou de onerar mais os produtos não essenciais, inclusive para desestimular o consumo, ficará bastante limitada a partir da aprovação da PEC 45.
Para compreender melhor os efeitos desta limitação, é importante lembrar que diversos programas de estímulos setoriais do governo só se viabilizam por meio de desonerações tributárias. Por exemplo: recendente o governo federal lançou um programa de estímulo à venda de carros populares. Da mesma forma, relançou o programa de desenvolvimento da indústria dos semicondutores (PADIS). Ambos os programas são viabilizados mediante concessões de benefícios fiscais.
Os problemas considerados mais relevantes pelos defensores do Estado social ficaram para ser resolvidos na segunda etapa da reforma tributária, como tem sido anunciado pelo próprio governo. As questões que se colocam neste momento são: que mudanças serão propostas? quem serão os atores a interferirem nesse debate? Não há dúvidas de que as mudanças mais esperadas seriam aquelas que anulem as alterações promovidas desde 1989 até agora e que afastaram a tributação dos fundamentos da Constituição.
Portanto, será necessário revogar a isenção dos lucros e dividendos e os juros sobre o capital próprio, corrigir o limite de isenção para desonerar as baixas rendas e reorganizar a tabela do Imposto de Renda, com a inclusão alíquotas marginais mais elevadas para altas rendas. É preciso também desobstruir o caminho para a implementação do Imposto sobre as Grandes Fortunas. Do ponto de vista da retomada da industrialização e do desenvolvimento do País, é preciso, sim, resgatar os instrumentos tributários que permitam que o Estado possa promover condições favoráveis à ampliação das cadeias produtivas e ao desenvolvimento sustentável.
Parecem medidas tecnicamente muito simples, no entanto, a história recente nos mostra que esse tipo de mudanças na estrutura da legislação tributária, ainda que estejam absolutamente alinhadas com a Constituição Federal e afinadas com a intenção do governo, tantas vezes manifestada, depende de uma nova correlação de forças que precisa ser construída na sociedade. Para tributar os super-ricos é preciso mobilização popular que seja capaz de pressionar o parlamento no nível suficiente para neutralizar a pressão dos setores que têm monopolizado o debate tributário e que são claramente contrários à implementação do projeto constitucional.
Todos, independente de ideologias, concordam que precisamos de uma reforma tributária, mas, evidentemente, dependendo de quem analisa, os problemas a serem corrigidos são distintos.
Para os neoliberais, que defendem o Estado mínimo, o problema pode estar no tamanho da carga tributária e a complexidade da tributação. Para quem defende o Estado de bem-estar social, o principal problema é a sua regressividade. Diferentes concepções sobre o desenvolvimento econômico também implicam em distintas percepções sobre os problemas da tributação.
Para cada concepção diferente de Estado, de desenvolvimento e de sociedade teremos problemas específicos a serem resolvidos no sistema tributário, pois os tributos são instrumentos que devem ser moldados para a construção de um projeto nacional.
No aniversário de 35 anos da Constituição, a melhor forma de homenageá-la é construir um sistema tributário progressivo, que tribute mais os mais ricos e menos os mais pobres. Só assim, seremos capazes de construir uma sociedade justa, livre e solidária.
[i] ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Intermunicipal e Interestadual e Telecomunicações – tributo de competência dos estados e do Distrito Federal.
[ii] IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados, de competência da União.
[iii] PIS/PASEP e COFINS – São Contribuições Sociais previstas no Artigo 195 da Constituição Federal vinculadas ao financiamento da Seguridade Social.
[iv] ISS – Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, tributo de competência dos municípios.
Dão Real Pereira dos Santos
Auditor fiscal, presidente do Instituto Justiça Fiscal, coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos
Foto: crédito Felipe Cavalcante