O avesso da insegurança
Por Marco Antonio Spinelli
Uma das histórias sobre o Buda conta que, um famoso matador profissional de sua época começou a seguí-lo. O Buda não desviou o seu olhar e continuou seu caminho. O bandido, que se chamava Agulimalia, começou a gritar para o Buda parar, mas ele não detinha seu passo. O cara foi ficando irritado e apertou o passo, até finalmente alcançar o Iluminado. Furioso, perguntou por que não tinha parado. O Buda respondeu: “Eu já parei há muito tempo, Agulimalia: parei de fazer coisas que causam o sofrimento das pessoas e outros seres. Parei de causar a morte e trato de cuidar muito bem de tudo e de todos que me cercam. Todos querem viver. Todos temem a morte”. Reza a lenda que o malfeitor ficou tão impressionado que prometeu nunca mais matar nenhum ser vivo e se tornou um monge.
A animação da Pixar, “Divertidamente 2”, acompanha a menina do primeiro filme, Riley, se tornando uma adolescente. Na sala de controle de sua cabeça, as Emoções fundamentais que estavam no primeiro filme, Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojo recebem novos convidados, não muito desejáveis: Ansiedade, Inveja, Tédio e Vergonha. Mas ficou faltando um personagem oculto, o mais importante, o afeto primordial que faz tudo se movimentar na cabeça de Riley, e na nossa cabeça: a Insegurança.
Estudos de Neurociência apontam que, desde a vida fetal, existe uma espécie de ressonância entre o Feto e as emoções da mãe. Como um primeiro reconhecimento. A ideia freudiana que ficar dentro do líquido amniótico, boiando nove meses sem nenhuma tarefa, nenhuma responsabilidade, só a sensação oceânica de prazer e proteção, na verdade não é bem assim. Os medos, a insegurança, as dúvidas, são transmitidas para o bebê em formação. Uma vez eu fiz um relaxamento para pessoas que estavam num workshop e fomos voltando no tempo, numa regressão até o tal período fetal, onde tudo era paz? Para muita gente, não. Uma moça descreveu uma sensação de um lugar gelado, o que pode ter sido uma depressão que sua mãe estava passando na gestação.
O fato é que, como disse o Buda, queremos viver, queremos cuidar e receber cuidado, e a vida já começa, desde o início, com a percepção da insegurança. A Insegurança é evolutiva e preserva, ou tenta preservar, a nossa sobrevivência. Existe um parasita, o Toxoplasma, que infecta ratos, mas tem como hospedeiro principal os gatos. Por um mecanismo desconhecido, ele desliga o medo no Cérebro dos ratos, que vão brincar com os gatos e acham os caras interessantes. Não é difícil prever o que acontece com esses ratos. Portanto, precisamos da Insegurança para viver. No caso do nosso Cérebro, que é uma máquina preditiva, fazemos cálculos baseados em nossa Insegurança o tempo todo. Não acabamos na pança de nenhum predador, geralmente, mas passamos a vida com Medo do que possa acontecer.
No filme, a menina Riley descobre que suas “best friends” não vão continuar na sua escola. Ela vai para um acampamento de Hockey e passa a fazer de tudo para se entrosar com as garotas mais velhas. Para isso, ela dá as costas para suas amigas, mente, maltrata e trapaceia porque na Sala de Comando está a Ansiedade. Mas quem está comandando a ansiedade é a Insegurança. O medo de ficar de fora, o famoso Fear of Missing Out, o medo da exclusão que está transformando a Adolescência numa jornada perigosa e cheia de medicamentos antidepressivos.
Quem está lendo aí do outro lado da tela deve concordar comigo que nosso mundo se transformou numa Adolescência coletiva, e todo mundo vive acossado pela sensação meio constante de Insegurança e Medo. Medo do futuro, da doença, da velhice, de ficar de fora, não do time de Hockey, mas fora do mercado, fora da Rede Social, cancelado de alguma forma do Mundo. Não temos medo do predador, temos medo de deixar de existir num cancelamento social, afetivo, econômico. Por isso, nossa velha dama Insegurança hoje está bem acompanhada por outro afeto novo, o Burnout, o Esgotamento. Já começamos o dia esgotados.
Procuramos o avesso da Insegurança na falsa sensação da Segurança e sua pior doença, que é o Controle. Vamos atingir a Segurança quando tudo for controlado, e a vida ficar protegida dentro de um cofre. Ou seja, a tentativa de controle se opõe à própria vida. Riley vai descobrir isso no seu acampamento. E nós, nem sempre vamos aprender. Nem vamos desistir de tentar controlar o que não tem controle.
Se não controlamos nada, e a vida é um surfar em uma constante Incerteza, qual é o avesso da Incerteza?
Esse texto já tinha essa resposta: parar de causar sofrimento às pessoas e os seres que nos cercam, e cuidar da Insegurança de todos é um bom jeito de começar. O avesso da Insegurança é o Cuidado.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”