“Mátria”: em livro de estreia, poeta piauiense Laís Romero aborda corpo, ancestralidade e maternidade
Em “Mátria”, livro de poemas publicado pela editora Paraquedas, escritora propõe o feminino enquanto território
“O silêncio, o cansaço e a sensação de fracasso servem de subtexto e impulsionam o seu desejo; o desejo, já realizado, de ser artista, de ter o próprio corpo como matéria-prima de sua arte, um corpo que flutua, que dança, que resiste, que faz poesia.”
Trecho da orelha de “Mátria”
Quem são as mulheres, que devido ao corpo que carregam, seguem invisibilizadas? É o que questiona a escritora, revisora, editora piauiense Laís Romero (@a_laisromero) em seu novo livro “Mátria” (Editora Paraquedas, 84 pág.), que amplifica temas que perpassam como corpo, ancestralidade, feminismo e maternidade.
“Mátria” é um livro-corpo que se divide em três partes: Desejo, Mátria e Pathos. Como o próprio título sugere, trata-se de uma busca pelo lugar de expressão da mulher. Não qualquer mulher, uma mulher que tem um corpo, uma origem, um país, uma mátria, nordestina e singular. A partir do seu desejo, da ancestralidade que remonta a Lilith, aquela que renunciou a um suposto paraíso, Laís mergulha na materialidade de ser mulher para encontrar enfim seu pathos, sua capacidade de comover e afetar a nós, leitores, com sua poesia.
Na obra, a autora convida a atravessar a pele-papel que a separa do mundo, mas que também serve de superfície para explorar sua poesia, sua língua, sua escrita e seu bordado. O silêncio, o cansaço e a sensação de fracasso servem de subtexto e impulsionam o seu desejo; o desejo, já realizado, de ser artista, de ter o próprio corpo como matéria-prima de sua arte, um corpo que flutua, que dança, que resiste, que faz poesia. “São temas que me escolheram”, aponta Laís. “Nasci mulher piauiense, não tenho muita escolha aqui”, frisa a autora, evidenciando também que partiu de inquietações pessoais para a escrita dos textos. “Passo caminhada no desejo, na maternidade e na paixão afetada, de maneira firme e puxando as imagens prosaicas do que vivo diariamente.”
Ao longo dos 50 poemas — que adotam um estilo prosaico de métrica livre —, os leitores mergulham em mére-mar-mãe-mátria, esse lugar cheio d’água, profundo, no qual é possível se reconectar com a origem de si e encontrar a pausa da exaustão. De volta à superfície, é preciso puxar o ar com força como quem busca o pathos, “a coragem de descrever o que não é meu e não pertence, apenas é”. A poesia de Laís oferece a outras mulheres um espelho para que elas saibam quem são.
“Não penso em mensagens, mas em imagens. Uma visão de como a mulher conjuga os verbos enquanto sujeito é o que pretendo comunicar de maneira direta e pontual”, aponta a autora. Essa descrição pode ser observada já a partir do título, que subverte a palavra “pátria”, usada para se referir a um território de origem, clamando por um espaço em que as mulheres tenham direito à voz, à expressão e a uma história. Deste modo, “Mátria” também traz um coro de mulheres poetas como referências principais, tais como Ana Cristina César, Matilde Campilho, Maya Angelou, Renata Flávia, Cecília Meirelles e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Segundo Laís, a escolha de resgatar a própria história na poesia veio com urgência e de maneira espontânea. A poeta revela ter passado por conflitos internos e frustrações com a maternidade. Além disso, o apagamento histórico de sua família, cuja ancestralidade se mostra presente apenas em sua face “entre a indígena e a negra”, também foi um questionamento importante na formulação da proposta da obra. “As mulheres foram sobrevivendo, sempre levando a família adiante. Em face dessa realidade onipresente no Brasil, declarei o território ‘Mátria’“, reafirma.
O processo de criação ocorreu ao longo de um período de 15 anos, com sua versão inicial concluída em 2014. Em 2017, o artista piauiense Lysmark Lial produziu a arte de capa do livro, mas a autora só considerou o projeto concluído em 2023. “Mátria” foi publicado no mesmo ano, com edição da Paraquedas, selo de publicação assistida da editora Claraboia.
“Esse livro representa um peso que me livrei. Em outros momentos esse livro representa meu cansaço descomunal enquanto mulher, num desassossego (essa maravilhosa palavra cheia de esses)”, comenta. “Por dentro consegui me sentir escritora, poeta, pois passei a existir no mundo. Essa obra é uma presença, não meço a dimensão, mas sinto como presença na linha do tempo da escritura sem fim.”
Mulher, mãe e escritora: os desdobramentos de Laís Romero
Nascida em 1986, Laís Romero nasceu, cresceu e reside em Teresina, no Piauí. É mãe do Luís e do Júlio. Possui mestrado em letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e especialização em escrita e criação pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Atualmente, trabalha como revisora e editora. Possui poemas e textos literários em diversas antologias e revistas.
Laís também se destaca por sua trajetória acadêmica. Formada em Letras e Mestre em Literatura, a escritora também atuou como professora de Língua Portuguesa no Instituto Federal do Maranhão e como professora substituta de Literatura no curso de Letras/Libras na UFPI. Desde 2022, cursa bacharelado em Medicina.
O estopim para a sua escrita aconteceu aos 11 anos, quando venceu um concurso literário em sua escola. “O poema virou uma atração na família, um marco”, diz. “Lembro de datilografá-lo para que um tio, então professor de literatura, o levasse para uma aula de poesia”, recorda. Todo esse apoio foi motivador para Laís, que decidiu mergulhar de vez no universo das palavras.
Atualmente, porém, o hábito de escrever se vê em disputa com a maternidade, o descanso e o trabalho. “Infelizmente não há salário para que possamos escrever literatura, daí uma verdadeira ausência de rituais: escrevo quando e como dá.” No momento, a autora trabalha em um romance e no processo de releitura e reescrita de um livro de contos.