As delações premiadas e o gosto amargo da hipocrisia esquerdista

Por Kátia Magalhães

Em nossos tempos de superficialidade de opiniões, onde as relações de força entre os diversos atores políticos, quer investidos de mandatos, quer de togas, têm sido concebidas como meros embates entre torcidas organizadas de esportes de massa, talvez tenhamos sucumbido, por completo, ao vício do relativismo. Seja na ciência, nas artes, no direito e até mesmo na comunicação – que o diga a linguagem neutra! -, para boa parcela da nossa sociedade, o sentido das crenças humanas não mais se pauta por referenciais abstratos, dependendo, antes, do ponto de vista daqueles que ocupem “lugar de fala” aos olhos dos grupos hegemônicos.

No momento em que escrevo, acaba de ser preso o ex-bombeiro Maxwell Simões, apontado, em colaboração premiada firmada pelo ex-policial militar Élcio Queiroz, como partícipe do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Sob as lentes indisfarçavelmente comovidas da grande mídia, o próprio ministro Dino alardeou a delação em entrevista, quase como se se tratasse de notável feito da sua gestão no desfecho de crimes contra a ordem política, de narcotráfico ou contrabando, cuja repressão teria efetivamente cabido à PF e ao Ministério da Justiça. Após quatro anos de agruras no cárcere, Élcio decidiu quebrar o silêncio e auferir os benefícios de um acordo previsto na legislação, e por ele livremente pactuado com as autoridades policiais e o MP.

Ontem, a colaboração premiada posou de vedete nos círculos jornalísticos, exaltada como mecanismo eficaz na identificação de um bando de assassinos torpes. Outrora, porém, a torpeza costumava ser atributo rotulado ao próprio instrumento da delação, enxergada como instrumento inquisitorial e vil pelos mesmos repórteres, juristas, políticos e até togados que festejaram mais um avanço nas investigações sobre o caso Marielle.

É indiscutível que todo o extenso universo dos aliados dos ora assentados no Planalto sempre fez coro de veemente reprovação em torno das delações, até por terem sido elas as principais ferramentas para a identificação dos protagonistas do chamado escândalo do Petrolão, e para a condução dos responsáveis à cadeia. Não à toa um dos braços-direitos de Dino, tradicional petista e atual secretário de Defesa do Consumidor Wadih Damous havia, quando deputado federal, apresentado três projetos de lei com vistas à limitação nos efeitos das delações. Dentre os textos, frise-se, constava um dispositivo que somente autorizava a homologação de colaborações com envolvidos que estivessem respondendo ao processo em liberdade. Ora, como terá se sentido Damous, na intimidade do seu travesseiro, ao pensar na imagem do novo colaborador Élcio, que só tomou a iniciativa do acordo após quatro longos anos na podridão do xadrez?

Na esfera judicial, foram incontáveis os casos de anulação de colaborações premiadas de réus na Operação Lava-Jato, e, em decorrência de tantos entendimentos favoráveis aos detentos supostamente coagidos pela República de Curitiba, perigosos salteadores do erário foram libertos em massa – e sempre sob as nobres justificativas de respeito ao devido processo legal, como no caso do nosso inesquecível governador Sergio Cabral, cuja delação parecia envolver até o Ministro Dias Toffoli, e foi anulada pelo STF, com a participação do próprio togado, por ausência do MP na celebração do acordo.

Igualmente “singular” foi a anulação, também pela suprema corte, da colaboração de Antônio Palocci, por ter sido pactuada com o então juiz Moro poucos dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, fato que, por si só, teria sinalizado uma parcialidade do magistrado. Afinal, entre nós, certos políticos suspeitos de transações nada republicanas não podem ter seus intestinos expostos às vésperas do escrutínio. Trata-se de uma das leis “não escritas” de maior eficácia no país. Foi assim em 18, em 22, e talvez essa “norma” promulgada por togados, com amplo suporte da imprensa, permaneça em vigor durante corridas eleitorais.

Mais “curiosa” ainda foi a anulação da delação de Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio, cuja língua solta e bem afiada havia comprometido a elite da advocacia nacional, incluindo o futuro togado Zanin, tendo ensejado a rumorosa Operação Esquema S, tantas vezes aludida neste espaço. No entendimento do magistrado cariosa responsável pela decisão, fundamentada em precedente do STF, teria havido “indução do colaborador por parte da extinta força-tarefa do Ministério Público Federal para a operação Lava Jato” e “nítido intuito de criminalizar a advocacia”.

Se puxarmos pela memória, virão à tona várias outras colaborações abortadas por togados de cúpula, que, de hábito, as concebem como monstrengos desenhados pelos protagonistas do lavajatismo, no que seriam atentados à liberdade de meros suspeitos, ainda não condenados em última instância. Nessa toada, cabe uma menção às palavras do ministro Gilmar Mendes, em recente entrevista ao programa televisivo Roda Viva, quando se referiu ao instituto da delação premiada como uma “criação errada” do governo Dilma, com um texto “sem parâmetros” que teria sido escrito por Moro e Dallagnol. Será que o togado se mostrará assim tão crítico às colaborações se o caso Élcio/Marielle vier a cair em suas mãos?

Divergências são saudáveis, inerentes a qualquer democracia, e, ao longo de uma mesma existência, qualquer um de nós dispõe da mais ampla liberdade para a formulação e a constante modificação de seus próprios juízos sobre pessoas e conceitos. No espaço público, porém, em que o indivíduo abandona a solidão de seu núcleo para atuar em assuntos referentes a toda uma coletividade, a postura dos atores dentro de um certo quadro normativo passa a ser observada e a gerar expectativas junto aos demais.

O súbito louvor ao instituto da colaboração, por parte de figuras que o demonizavam até ontem, não só contribui para fomentar um ambiente de crescente insegurança/ imprevisibilidade como ainda escancara as interações políticas como simples jogos de interesses pessoais, sem um laivo sequer de apreço à institucionalidade. Opiniões são invertidas ao mero sabor das conveniências dos poderosos de plantão, e, em meio à linguagem das guerras tribais, permeada por expressões tais como “entreguei a cabeça do fulano”, ou “é preciso extirpar essa gente”, a sociedade começa a não mais enxergar diferenças significativas entre o modo de proceder dos caciques políticos e o dos líderes da marginalidade.

Se, como ensina La Rochefoucauld, a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude, e o hipócrita se traveste de virtuoso para prejudicar os outros e auferir benefícios pessoais, no Brasil atual, os comportamentos viciosos já são tão escrachados que nem há mais que se falar em disfarces. Somos, sim, uma “democracia relativa”, sob a hegemonia de nocivas doutrinas coletivistas, e formada por cidadãos cada vez mais calados e assustados diante da elevação dos piores vícios à categoria de virtudes. Sem retoques ou maquiagem.

Kátia Magalhães é colunista do Instituto Liberal e advogada 


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