A ciranda da crise brasileira
Por Samuel Hanan
Nós brasileiros, temos uma expressão popular bem peculiar, muito usada quando queremos nos referir a uma situação em que se busca algo com bastante esforço sem, entretanto, alcançar resultado algum: “É o cachorro correndo atrás do próprio rabo”.
Ela cabe perfeitamente para ilustrar a atual situação do país, em um momento em que uma série de medidas são tomadas – a mais barulhenta delas é a reforma tributária, em fase de regulamentação no Congresso Nacional – sem resultados efetivos até agora, mesmo passados 18 meses do início do novo governo.
O país vem olhando muito para a busca de soluções sem tentar enxergar prioritariamente as causas da situação. O governo tem resistido a entender que o foco da crise está no gigantismo do Estado brasileiro e no desequilíbrio das contas internas. A máquina administrativa não para de crescer e de há muito as despesas primárias são maiores que as receitas.
A primeira consequência, inafastável, é que o déficit público só faz aumentar. Dobrou de tamanho em 2023, fechando o ano em R$ 967 bilhões, ante R$ 480 bilhões registrados em 2022. Mais déficit público significa mais dívida pública, que já compromete de 77% a 79% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, somando cerca de R$ 9 trilhões.
Com o aumento da dívida, sobem também os juros que o país tem de pagar ao mercado financeiro. E isso eleva a dívida pública. Vai-se, desta forma, alimentando o círculo vicioso porque se a dívida pública cresce, fica maior a taxa de risco do país, o que afasta os investidores externos e provoca aumento no spread/taxa de juros.
Com tudo isso, fica menor o volume de recursos disponíveis para prestação de serviços essenciais à população – saúde, educação, habitação, saneamento e segurança, principalmente. Tais serviços vão se precarizando e ficam cada vez menos universais, criando frustração na população, que confiou nas promessas de campanha.
A crise perdura há mais de 25 anos e tem várias origens, menos uma: a falta de recursos financeiros. Basta ver que os governos pós Constituição Federal de 1988 vêm dispondo de 32% a 34% do PIB (arrecadação tributária mais de 8% a 9% do PIB a título de déficit público financiado pelo caríssimo endividamento público).
Entre as várias causas dessa situação há algumas muito evidentes, que coincidem com o pensamento de grande parte da população, a começar pela falta de um Plano de Metas acompanhado de avaliação periódica e transparente para fiscalização do eleitor.
Somam-se a isso a tolerância à corrupção endêmica e a priorização da manutenção – e ampliação, sempre que possível – da fantástica fábrica de privilégios em benefício dos donos do poder, com a certeza de que governar é retirar direitos da população a fim de propiciar recursos para financiar a situação muito confortável de poucos.
Além disso, temos a prática constante de escamotear a verdade, escondendo-a atrás da falta de transparência dos atos do governo, optando-se pela permanente venda de promessas que sabidamente não serão cumpridas, transformando-se em meras ilusões.
Como se fosse coisa normal, cerca de R$ 1 trilhão está sendo subtraído anualmente dos serviços públicos da saúde, educação, segurança pública, habitação e programas sociais.
Um bom exemplo de como a coisa pública não é levada a sério, mesmo nos setores mais sensíveis à sociedade, é o Plano Nacional de Educação, criado pela Lei nº 13.005, de 2014, com 20 metas nunca cumpridas na integralidade e agora substituídas pelo novo PNE de 2024. A meta 6 original previa que até 2016 seria oferecido ensino em tempo integral em pelo menos 50% das escolas públicas, mas o Censo mostrou que em 2022 apenas 6,9% das escolas contavam com esse avanço. Outro caso: a meta 20 previa ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, 7% do PIB até 2019 e 10% do PIB em 2024. Mera ilusão: em 2023, o investimento em educação não passou de 5,5% do PIB, ficando, portanto, muito aquém da meta.
A ciranda da crise segue girando e, diante do desgaste, o governo opta por criar narrativas, apontando vilões como os responsáveis pelos maus resultados, reeditando o discurso de heranças malditas, sem jamais realizar um mea-culpa. Parece haver uma necessidade incontrolável de seguir vendendo ilusões e, com isso, se acentua o distanciamento da verdade.
É sempre possível, no entanto, transformar o círculo vicioso em virtuoso. Possível e necessário, para que o país não siga patinando e reencontre o caminho do desenvolvimento porque só assim a população poderá resgatar a esperança de uma vida mais digna.
O ponto de inflexão, sem dúvida, é garantir mais transparência. É fundamental trabalhar com a verdade, enterrando-se de vez a prática de criação de narrativas que ao final se revelarão estéreis com a evolução dos fatos.
O Brasil reclama também um compromisso firme e inadiável de combate à corrupção, mal que nunca deixou de existir no país, deixando um rastro de enormes prejuízos aos cofres públicos. Sem o seu combate sério e efetivo, sempre reinará a impunidade e permanecerá a sensação de que o crime compensa, em uma perigosa sinalização às novas gerações, afastando da boa política as pessoas de bem. Porém, meros discursos não bastam. São necessárias mudanças legislativas para tornar imprescritíveis os crimes cometidos contra a administração pública, impor maior rigor à Lei da Ficha Limpa, e reduzir drasticamente o número de pessoas com foro por prerrogativa de função.
Estima-se que a corrupção consuma entre 2% e 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Embora o desejável fosse reduzir a perto de zero , admitindo- se realisticamente a redução pela metade, o Brasil teria uma economia de R$ 150 bilhões/ano em recursos públicos que hoje escoam pelo ralo. Apesar disso, há cerca de dois anos não se vê atuação nesse sentido. Os esforços da Polícia Federal parecem estar concentrados apenas na questão da venda de joias pelo ex-presidente e na apuração dos lamentáveis episódios de 8 de janeiro de 2023 em Brasília.
Enquanto isso, outros escândalos passam sem alarde, como os indícios de direcionamento de recursos orçamentárias para atender interesses particulares de um ministro de Estado; a polêmica concorrência para importação de 263 mil toneladas de arroz, vencida por empresas sem capacidade técnica e que acabou cancelada pelo governo; e a transação com concessão de energia térmica no Amazonas, envolvendo um passivo de bilhões de reais ao final assumido pelo governo e, é claro, pago pelo contribuinte. O grande humorista Jô Soares (1938-2022) dizia algo muito sério: “A corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é coisa muito nossa”. Aprendamos com ele.
Para interromper a ciranda da crise também é fundamental reduzir os gastos com funcionalismo público que hoje consomem 12,8% do PIB. Um grande avanço seria limitar essa despesa a 9,8% do PIB, média registrada pelos 37 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que poderia ser feito por meio da redução de privilégios e com os não-concursados, gerando economia de R$ 340 bilhões/ano.
É essencial, ainda, reduzir os gastos tributários da União dos atuais 4,8% para 2% a 2,5% do PIB, o que garantia economia de R$ 320 bilhões/ano.
Outra providência que se impõe é tornar as eleições menos onerosas. Isso pode ser feito limitando os recursos dos fundos partidário e eleitoral e acabando com a reeleição para cargos do Poder Executivo.
Essas poucas – porém necessárias e contundentes – medidas seriam capazes de propiciar, sozinhas, a redução de despesas da ordem de R$ 810 bilhões/ano. Representariam um grande passo rumo à austeridade e à responsabilidade orçamentária, fundamentais para o Brasil superar a crise e visualizar um horizonte mais positivo para o país e sua população, com maior eficiência administrativa, mais desenvolvimento e menos pobreza.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.