Povo salvando povo – Sob o olhar de uma brasileira, gaúcha

Por: Ana Paula Rabello

É indescritível experimentar e sentir esse misto de impotência, culpa e até vergonha. Esses sentimentos não emergem pela tragédia em si, mas pela forma como ela se desdobra. Aos 51 anos, eu nunca tinha vivenciado nada parecido, apenas o que via na televisão, incluindo operações de resgate. Admito que fui uma das que ignorou os avisos de que algo grave se aproximava. Inclusive no dia em que presenciei as ruas de Porto Alegre sendo engolidas pela água, continuei perplexa, tirando fotos na Rua dos Andradas, minutos antes de a inundação atingir o supermercado onde eu ainda estava.

Talvez isso explique minha vergonha pessoal e minha indignação. Não estávamos preparados. Do alto do meu apartamento, na Praça dos Três Poderes, no coração de Porto Alegre, eu acreditava estar segura. Pensava que seria apenas mais um alarme exagerado. Mas então, aconteceu. As águas invadiram a Andradas, minha mãe, que é acamada, ficou ilhada, apartamentos e comércios foram destruídos, e o medo se instalou profundamente.

As notícias sobre a magnitude da tragédia começaram a surgir. Nada impedia o avanço das águas – nem comportas, diques, nem sacos de areia. Tudo era em vão. Meu filho chorava, e eu tentava tranquilizá-lo, dizendo que estávamos vivos e isso que importava. Percebemos que vivíamos sob um desgoverno, sem líderes capazes, e que nossos impostos não garantiam nem o uso básico das instalações públicas em momentos de crise.

Neste cenário de desespero, surgiram os “heróis”. Nomeamos assim todos aqueles que vieram ao Rio Grande do Sul trazendo comida, água e recursos. A ajuda se tornou um símbolo de salvação. A tragédia transformou nosso estado no lugar mais fotografado do país, com todos buscando seu momento de heroísmo. Se o preço dessa ajuda é uma foto ou um vídeo, estamos dispostos a pagar. Ainda hoje, novos heróis chegam, atraídos pela visibilidade dos primeiros.

Mas é essencial reconhecer que os verdadeiros heróis foram as pessoas comuns, aquelas que fizeram doações, pisaram nas águas e salvaram vidas. Hoje, ainda tento trabalhar, mas me sinto envergonhada e culpada ao pensar em como ensinamos as pessoas a pagar impostos em um país que não prioriza suas necessidades básicas, de humanidade e MÍNIMA dignidade.

Vejo esforços para manter a aparência em prédios públicos enquanto faltam necessidades básicas como água potável e energia elétrica. Algumas autoridades escondem doações para se promoverem como salvadores. Apesar disso, há prefeitos que demonstraram verdadeira liderança.

Hoje, sinto-me privilegiada por estar viva e que os “meus”estão vivos. Mas também estou triste pelos que se foram e grata às pessoas que ajudaram sem saber a quem estavam ajudando. A catástrofe desenvolveu em mim um tipo de pânico que me faz repensar minhas escolhas e desejos futuros.

Rezo para que “depois disso” chegue logo. Continuo acreditando no que sempre defendi: não desejo deixar o Brasil, mas anseio por um Brasil diferente. Parece que essa tragédia despertou um gigante adormecido – o povo brasileiro que não desiste nunca.


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