Desistência na Adoção: um desafio enfrentado na busca por nova família para crianças e adolescentes acolhidos 

Segundo a Angaad, a desistência causa um enorme impacto emocional em todos os envolvidos, principalmente nas crianças e nos adolescentes que sonham com a conquista de uma nova família| Foto: Divulgação

Grupos de apoio à Adoção, distribuídos pelo Brasil e acompanhados pela Angaad, estão prontos para prestar assistência às crianças, aos adolescentes e aos futuros pais e mães a fim de evitar essa renúncia do processo que impacta o direito pela convivência familiar

Adoção é um ato de responsabilidade, envolto em afeto. Tem o poder de ressignificar a vida de crianças e adolescentes que, por diferentes motivos, não puderam mais estar com suas famílias de origem. No entanto, nem sempre o processo resulta no tão aguardado final feliz. No decorrer da jornada, alguns adotantes desistem da conclusão da Adoção, antes da sentença que os tornaria, oficialmente, pais ou mães. A ruptura é causadora de severas implicações emocionais, legais e sociais, num contexto já bastante sensível. 

Desistência ou devolução? 

Os termos desistência e devolução são similares, mas há uma tendência a se passar a usar apenas o primeiro. 

De acordo com Clarice Maria Scheid, membro do grupo de apoio à Adoção Projeto de Vida, de Indaiatuba, no interior de São Paulo, integrante da Angaad (Angaad (Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção), a desistência costuma ocorrer no momento de aproximação entre aqueles que, futuramente, seriam adotante e adotado. É quando se iniciam os passos de entrosamento entre ambos. A criança ou o adolescente, ainda em situação de acolhimento, passa a receber visitas acompanhadas de profissionais da área psicossocial do Judiciário e da rede protetiva. Tudo é feito com muito cuidado, para possibilitar uma construção segura das pontes afetivas necessárias ao envolvimento pleno. As visitas passam para etapas de maior interação, como em passeios e até na interação durante todo o final de semana, na casa dos futuros pais ou mães. Até este momento, os envolvidos podem perceber que não era o que buscavam com a Adoção ou que questões pessoais mal resolvidas poderiam levar a problemas. Se a situação for incontornável, seria a hora de desistir, de não levar adiante a aproximação. 

Caso o estágio de convivência evolua bem, a guarda para fins de Adoção é deferida pela Justiça. A criança ou o adolescente sai do acolhimento e passa a viver com os guardiões. O vínculo jurídico que o termo de guarda dá é provisório, mas, ao assumir a guarda, o guardião assume o compromisso temporário de cuidado integral. Do outro lado da relação, a criança ou o adolescente já se torna dependente, para todos os fins e efeitos de direito. Clarice Scheid explica que, enquanto a família vive sob a guarda provisória, sem sentença de Adoção, é quando, tecnicamente, pode ocorrer uma ruptura de vínculos afetivos, com a famigerada devolução. 

Porém, de acordo com os dicionários da Língua Portuguesa, a palavra devolução é comumente usada para bens materiais. Não é a melhor expressão para pessoas. Por isso, os especialistas têm chamado de desistência o rompimento da vinculação afetiva, que tinha fins adotivos, nos dois momentos iniciais de aproximação e convivência. 

Ainda durante o período de guarda, é iniciado o processo judicial de Adoção, que, ao final, poderá dar os laços formais de filiação. Esta é irrevogável e a ideia de devolução seria equivalente ao crime de abandono de um filho. A lei brasileira não reconhece possibilidade de devolução de um filho, seja ele biológico ou adotado. Não há a quem devolver. Se existe o vínculo jurídico entre pais e filhos, há a obrigação de cuidado, ressalta Clarice Sheidt. 

Desistência 

As razões que resultam na desistência, durante o período de aproximação, são inúmeras. O fator emocional dos adotados é um dos que mais influencia. Muitas das questões sentimentais mal resolvidas na vivência familiar anterior da criança ou do adolescente acabam vindo à tona no convívio com os adotantes. Além disso, a especialista aponta inconsistência no preparo, tanto de crianças e adolescentes quanto dos futuros pais e mães. 

“Eu vejo que as crianças e os adolescentes também carecem de uma maior preparação por parte dos acolhimentos, que comumente não prestam um acompanhamento individual para explicar as mudanças que acontecerão em suas vidas”, analisa a voluntária do grupo de apoio à Adoção. Ademais, ela aponta que, mesmo diante dos problemas que os tiraram de suas famílias de origem, muitos ainda sonham com o retorno a este núcleo. “Ao passar pelo processo afetivo de Adoção, todo esse mundo com o qual o adotado estava acostumado vai mudar, sendo necessária uma adaptação antes mesmo de começar a aproximação com a nova família”, complementa. 

Nesse ínterim, também há dificuldades vividas por crianças e adolescentes que ficam por muito tempo em situação de acolhimento. Eles estabelecem um vínculo maior com a instituição em que vivem. “Por si só, essa quebra de rotina altera o lado emocional e se encaminha para o comportamental”, explica. “Não podemos esperar que o adotado conseguirá racionalizar o cenário de sair do ambiente em que estava inserido e, naturalmente se adequar em um universo desconhecido. Há de se considerar um período de adaptação às novas rotinas, influências, responsabilidades e o elo que os fazem chamar o adotante de pai ou mãe”, resume Gilson Del Carlo, membro da diretoria do GAALA (Grupo de Apoio à Adoção “Laços de Amor”) e tesoureiro da Angaad. 

Outro ponto crucial é entender que os adultos adotantes são os maiores responsáveis pelo sucesso nessa relação. A jornada da Adoção envolve preparação constante, porque requer dos adultos o papel de fios condutores nas relações, sempre respeitando a criança ou o adolescente. O elo mais maduro da relação filial carrega mais responsabilidades, as quais não podem ser transferidas, bem como o ônus de uma desistência da Adoção, às crianças e aos adolescentes. 

A importância do apoio psicológico 

Diante das situações vivenciadas por futuros pais e filhos, no processo de construção de vínculos afetivos, os grupos de apoio à adoção (GAAs) estão prontos para fornecer a assistência necessária à resolução dos conflitos. Uma das ferramentas é fomentar a interação entre pessoas que estão em estágios diferentes do universo da Adoção. Nas reuniões promovidas pelos grupos, os pretendentes e adotantes podem expressar seus medos, dividir suas dúvidas e compartilhar informações, sempre acompanhados por profissionais e voluntários experientes na área. 

Quanto maior for o engajamento do pretendente nos encontros e nas atividades desenvolvidas pelos GAAs, mais seguro e contundente será o processo de vinculação afetiva com os filhos. Essa preparação vai desde a decisão de adotar, passa pelo período de aproximação, chega à convivência sob guarda e desagua na efetivação do processo legal que reconhece a criança ou o adolescente como filho ou filha. A troca de experiências quebra expectativas irreais, frustrações e idealizações, trazendo a possibilidade de criação de uma história concreta e segura. 

Todavia, quando necessário, e se os pretendentes se mostrarem abertos, os grupos de apoio podem encaminhá-los para conversas particulares com os psicólogos. Na análise de Clarice, é apenas após a chegada da criança ou do adolescente que o adotante pode construir na mente e no emocional o impacto de se ver envolvido pelas responsabilidades e pelas rotinas que abrangem os cuidados com um filho. “O acúmulo de funções é grande. Em muitas vezes, o adotante só precisa conversar e os grupos de apoio são os espaços mais seguros para isso”, lembra Clarice. 

Além do trabalho com os pretendentes, vários grupos de apoio à Adoção também auxiliam na preparação de crianças e adolescentes, desde o acolhimento até os períodos de convivência na nova família.  

Consequências legais 

Quando o convívio já está na fase de guarda para fins de Adoção, uma desistência pode ser danosa para a criança ou o adolescente. Traumas e reflexos decorrentes de uma nova sensação de rejeição podem assombrar para toda a vida. 

“É por isso que todos os cuidados devem ser tomados pela rede protetiva de direitos de crianças e adolescentes. As pontes afetivas gradativamente construídas no estágio de convivência devem levar a vínculos concretos e indestrutíveis”, afirma André TumaPromotor de Justiça que coordena a atuação do Ministério Público na área de Infância e Juventude no Triângulo Mineiro. 

Se a desistência ocorrer, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que os adultos pretendentes sejam excluídos dos cadastros de Adoção e fiquem impossibilitados de renovar a habilitação. A única exceção decorre de decisão judicial fundamentada. 

Existe, ainda nesse cenário, uma construção jurisprudencial que responsabiliza os desistentes da Adoção, para que indenizem a criança ou o adolescente que voltou ao serviço de acolhimento. Boa parte das vezes, eles sofrem consequências relacionadas à saúde mental. O encargo imposto pelo Judiciário visa cobrir os custos de cuidados com a criança ou o adolescente, como os relacionados à saúde, até que ele chegue à maioridade. 

A medida é polêmica. Há quem a conteste por considerar uma ação estatal tardia e desajustada, vilanizando o pretendente à Adoção, mas houve ainda prévia omissão do poder público. No entender dos críticos, o Estado não fez as avaliações corretamente, não preparou adequadamente ou não deu o apoio necessário à constituição da nova família. Em contradição, quando a Adoção não se concretiza, o Estado age coercitivamente para cobrar do pretendente a expectativa de direito gerada. A polêmica também leva em conta o fato de que os pretendentes tomaram a iniciativa de habilitação, aceitaram fazer a aproximação, fizeram o estágio de convivência e evoluíram para a guarda provisória, para, enfim, desistirem, quando já era temerário para a saúde mental da criança ou do adolescente.  

André Tuma defende que o Judiciário trate apropriadamente a expectativa de direito que foi gerada na criança e no adolescente, as maiores vítimas da desistência. “O direito em discussão é o da convivência familiar, que é fundamental para o ser humano. As medidas judiciais devem sempre avaliar o caso concreto, com fundamentação psicossocial, porque cada interação é única”, finaliza o promotor.  


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