Órfão de multinacional: o que fazer após deixar uma grande empresa?

Virgilio Marques dos Santos, sócio-fundador da FM2S Educação e Consultoria (Foto: Isaque Martins)

Por Virgilio Marques dos Santos

O desligamento de uma grande corporação pode parecer um fim, mas, para muitos, é o início de uma jornada de autoconhecimento, reinvenção e, eventualmente, de renovação profissional. A transição do ambiente estruturado de uma multinacional para o mercado, seja como consultor independente ou parte de uma empresa de menor escala, traz desafios e oportunidades únicas. Por ter passado por essa experiência, quero convidar você a refletir sobre esse tema.

Quando saí da pequena consultoria em que era sócio e entrei, aos 30 anos, numa multinacional, inicialmente lamentei muito. Mas, na nova empresa, tudo estava pronto. Se precisasse de algo, havia um caminho para solicitá-lo e fóruns de aprovação para validá-lo. A loucura do “tive uma ideia e saí fazendo” não existia.

Para mapear os processos, havia duas analistas no time. Para analisar os dados, mais dois. Precisando fazer a ata e cuidar da agenda, mais uma pessoa. Enfim, cinco pessoas totalmente disponíveis e treinadas nas rotinas da empresa. Todos sabiam o que era a tal reunião de planejamento semanal. Também estavam treinadas nas enfadonhas preparações dos slides para as reuniões de desenvolvimento gerencial mensais. Ninguém precisa ser ensinado sobre as rotinas básicas da empresa. Era como se a capacidade de produzir resultados do Virgilio estivesse em um patamar nunca visto. Foi uma experiência diferente.

A saída da multinacional: enfrentando o vazio

O desligamento de uma multinacional é frequentemente acompanhado por uma sensação de vazio. A segurança da rotina estabelecida, o reconhecimento da marca e o suporte de uma equipe bem afinada são, de repente, substituídos por um silêncio ensurdecedor. É uma fase em que o profissional se confronta com a realidade de sua individualidade, distante das estruturas e hierarquias que antes definiam seu papel e identidade.

Esse despertar foi desconcertante, mesmo para mim, acostumado com a vida de consultor pregressa. A ausência da rede de suporte corporativo e a necessidade de autogestão trazem à tona desafios inesperados. A responsabilidade por tomar decisões que antes eram compartilhadas ou delegadas agora repousava inteiramente sobre meus ombros. A transição exige uma adaptação não apenas profissional, mas também pessoal, em que o autoconhecimento e a autoconfiança são postos à prova.

Ao sair dos escritórios corporativos e voltar para o cenário da sala de casa para empreender, senti a inquietação. Começar aos 25 é visto como vocação e coragem. “Abdicar” da carreira em uma grande empresa, aos 31, é algo como loucura ou fracasso.

A rede de relacionamentos, as informações, o jeito de fazer, enfim, todos os aspectos profissionais estavam ajustados para o gerar desempenho na multinacional. Já as minhas habilidades, que foram fundamentais para construir uma empresa anos atrás, estavam desatualizadas. Bem como meus antigos clientes, que ficaram na outra empresa. Enfim, trabalhar de casa com um rendimento 8 vezes menor do que tinha na grande empresa foi desafiador.

Resetando o mindset

Andrew Grove, em sua obra “Administração de alta performance”, aborda a conceituação de maturidade na tarefa, em que destaca a importância da autonomia e da iniciativa na eficácia profissional. Para o profissional desligado de uma multinacional, esse conceito ganha uma dimensão prática imediata. A necessidade de construir do zero, de estabelecer novos processos e de se adaptar a recursos limitados se torna a nova realidade.

Essa transição é marcada por uma intensa fase de aprendizado e desenvolvimento de habilidades. O profissional deve aprender a ser multifacetado, assumindo responsabilidades que vão desde a concepção estratégica até a execução prática das tarefas. A capacidade de gerir seu próprio tempo, definir prioridades e manter a produtividade em um ambiente menos estruturado se torna crucial.

Além disso, a maturidade na tarefa envolve criar e manter uma rede de contatos e recursos. A solidão do caminho deve ser vista não como um obstáculo, mas como uma oportunidade para construir uma base sólida de contatos profissionais, clientes e colaboradores que compartilham uma visão e valores similares.

A obra de Grove me ajudou a entender o que tinha se passado. E, por meio dos conceitos, ficou clara a necessidade de começar do zero e trabalhar muito para recriar as redes que possuía quando estava na outra empresa. Do site ao relacionamento, comecei a reconstrução.

Do profissional corporativo ao empreendedor de si mesmo

A fase de reinvenção é, talvez, a mais desafiadora e gratificante. O profissional, outrora um emblema de sua multinacional, agora deve criar uma nova identidade. Não era mais o “Virgilio da empresa tal”, mas um indivíduo com seu próprio conjunto de habilidades, experiências e aspirações. Esse processo de redefinição está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento de uma marca pessoal autêntica e ao estabelecimento de uma presença profissional única.

Reaprender a executar tarefas, desenvolver novos processos e adaptar-se a uma dinâmica de trabalho diferente exige flexibilidade e resiliência. O profissional deve se tornar um aprendiz contínuo, aberto a novas experiências e disposto a sair de sua zona de conforto. Capacitação e treinamentos são fundamentais – não apenas para manter a relevância no mercado, mas também para fomentar a inovação e a criatividade.

O processo de luto após deixar uma grande empresa é, em última análise, um processo de redescoberta e crescimento. Embora desafiador, ele oferece uma oportunidade única para o profissional se reconectar com suas verdadeiras paixões, explorar novas possibilidades e, finalmente, encontrar um novo sentido de propósito em sua carreira.

Ao ver a minha empresa alcançando os resultados de hoje, acredito que cada etapa dessa jornada tenha sido uma chance de aprender, de crescer e de se transformar. Ao abraçar a mudança, busquei o autodesenvolvimento e a determinação – não só superando a orfandade corporativa, mas também me redescobrindo como um empreendedor de meu próprio destino, pronto para escrever o próximo capítulo de minha história profissional.

Hoje, se você está passando ou passou por uma situação parecida, não desista. Recorra a todo o apoio que puder e entenda que o processo será angustiante e doloroso. Mas que, com constância de propósito, como diria Deming, você chegará lá. E, quando possível, fuja, ainda que temporariamente, das redes sociais, pois nesses momentos em que estamos frágeis, ver algum colega vendendo sucesso e prosperidade financeira pode não gerar em nós um sentimento muito positivo. Nos questionarmos ainda mais não é algo que precisamos nessa fase.

Virgilio Marques dos Santos é um dos fundadores da FM2S, doutor, mestre e graduado em Engenharia Mecânica pela Unicamp e Master Black Belt pela mesma Universidade. Foi professor dos cursos de Black Belt, Green Belt e especialização em Gestão e Estratégia de Empresas da Unicamp, assim como de outras universidades e cursos de pós-graduação. Atuou como gerente de processos e melhoria em empresa de bebidas e foi um dos idealizadores do Desafio Unicamp de Inovação Tecnológica.


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