Um mês sem Zagallo: ídolos relembram histórias marcantes do Velho Lobo

Campeão do mundo como jogador e técnico deixou verdadeiro legado para o futebol brasileiro

O futebol mundial perdeu no início do mês de janeiro Mário Jorge Lobo Zagallo, ex-jogador e ex-treinador de muitos times e muitos títulos, aos 92 anos. Zagallo vinha internado no Hospital Barra D’Or , no Rio de Janeiro, quando sofreu de falência de múltiplos órgãos, o que acabou culminando com o fim da vida do ídolo de uma nação inteira. A lenda do futebol, é bem verdade, já sofria com comorbidades decorrentes de sua idade avançada. A internação no fim de dezembro era a segunda em menos de 90 dias. No mês de setembro, ele já havia passado pelo mesmo hospital com um quadro de infecção urinária.

Foram mais de meio século dedicados ao futebol e um legado deixado sob todos os aspectos esportivos. Mas para quem lê a matéria pode pensar de forma simplória e até inocente no fato de que, em todos os países apaixonados por este esporte, existe um ídolo, um jogador ou um treinador que se enquadra nas características citadas acima. Afinal, para muitos, o futebol é o principal esporte do planeta. Então, não seria difícil achar alguém que se enquadre em alguns (apenas alguns, não todos) desses pré-requisitos.

Entretanto, o site do SDA foi atrás de histórias e testemunhos de pessoas que conviveram com o Velho Lobo e garantem: Zagallo era um homem com uma visão muito à frente do seu tempo. Mas os títulos não falam por si? Sim. Contudo, no futebol, muitas vezes o que explica ou encanta não é apenas como termina, mas o processo do antes e do durante. E no caso de Mário Jorge Lobo Zagallo, o antes já passou, mas o durante e o depois seguem com o legado deixado pelo ídolo.

Jogador revolucionário

A história de Zagallo começa no Flamengo. Por lá, conquistou o tricampeonato carioca de 1953-54-55. Com a camisa do clube da Gávea, foi convocado para a Seleção Brasileira para o primeiro título de Copa do Mundo, em 58. Neste período, Zagallo já era um jogador diferente dos demais de sua posição. Isso porque, como ponta, o Velho Lobo simplesmente criou a função de acompanhar o lateral adversário para ajudar o seu companheiro de setor. Ou seja, ele não se limitava apenas a guardar a sua posição. Daí o apelido de “Formiguinha”.

O ex-meio-campista e ex-treinador Carlos Roberto, ídolo do Botafogo da década de 60, que viu o Velho Lobo jogar e foi comandado por ele, resumiu bem de que forma o seu ex-treinador mudou a função de ponta em benefício próprio e, posteriormente, do time.

– O Zagallo quando conheci, eu estava no infanto-juvenil e ele já estava no aspirantes. Como um jogador daquele ainda estava no aspirante? O Zagallo simplesmente criou a formação do 4-3-3 para ele. Logo depois, pegou no Brasil inteiro. O Fluminense passou a jogar daquela forma, depois outros clubes. Isso tudo porque o Zagallo começou com essa função – disse.

Jogador de boa velocidade e de um companheirismo poucas vezes vista, o Velho Lobo em campo não era dono de um chute muito forte como seus concorrentes. Mas sob o aspecto da precisão, Zagallo era tão bom ao ponto de deixar um dos maiores ídolos da história do Botafogo e do futebol brasileiro chateado. Conforme informações de Carlos Roberto, o goleiro Manga não gostava muito de bater bola com o Velho Lobo.

– No Botafogo, tinha os bate-bolas, que chutavam para o Manga pegar. O Zagallo sempre chutava com precisão e marcava. O Manga tinha uma bronca grande com o Zagallo, não gostava porque só ele conseguia fazer os gols – diverte-se o ex-jogador e ídolo Carlos Roberto com os olhos marejados.

Mudança de comportamento dos laterais

O jogador Zagallo ajudou a Seleção Brasileira a ganhar duas Copas do Mundo. A de 1958, na Suécia, inclusive, marcou na decisão contra os donos da casa. Além do Mundial de 1962, a chamada Copa do Garrincha. Com dois técnicos diferentes, o jogador foi útil e titular. Afinal, como dito acima, não era um atleta qualquer. Dava opções para os treinadores e companheiros. Mas mais ainda: era especialista em passes milimétricos e chutes de igual precisão.

Mais do que isso, quem viu esses Mundiais, particularmente o de 1958, passou a perceber um comportamento diferente do lateral Nilton Santos. Isso porque era uma época na qual os laterais tinham funções estritamente defensivas. Contudo, um dos maiores jogadores da história do Glorioso passou a chegar com certa frequência à frente para ajudar o seu time no ataque. Era o “Efeito Zagallo” também nas laterais do campo.

– Podemos dizer, sem dúvidas, que o Nilton Santos, o primeiro lateral a ir para o ataque ajudar o setor, só fez isso por ter jogado com o Zagallo. Ele dava essa opção, voltava e deixava o Nilton Santos protegido para atacar à vontade. Podemos dizer que ele não só revolucionou a ponta, mas também ajudou nas laterais – revelou Carlos Roberto.

É importante dizer que o Velho Lobo na Copa de 58 jogou um pouco mais recuado. Deu sustentação para o trio da frente, composto por Pelé, Garrincha e Vavá, tanto é que, como mencionado anteriormente, marcou gol na decisão, e ainda fez algumas vezes a função de lateral, quando o time de Vicente Feola não tinha a bola. Isso resultou na melhor defesa daquele Mundial. O Brasil sofreu apenas quatro gols.

Início como treinador do Juvenil

Depois de ganhar dois títulos cariocas e dois títulos do Torneio Rio-São Paulo como jogador, atuar com Nilton Santos, Didi e Garrincha, Zagallo viveu um impasse que todo jogador de futebol passa quando está chegando próximo ao fim da carreira. Mas para quem pensou que a vida de treinador estava esperando por ele naturalmente, está redondamente enganado. O Velho Lobo tinha inteligência, entendia de futebol, mas era tímido. Assim, ele precisou de um incentivo para poder aceitar o destino.

– Lembro bem que o grande incentivador para o Zagallo ser treinador foi o Neca. Tanto é que o Neca chegou pra ele e falou que ele (Zagallo) seria o treinador do juvenil e o próprio seria o auxiliar. O Zagallo no início da carreira ele era tímido. Ele dava instruções e ficava vermelho até com os garotos. Mas meses depois ele saiu do juvenil e foi dirigir aqueles caras com quem ele tinha jogado há pouco tempo. Levou toda a inteligência do campo para ser treinador – revelou Moreira, ex-lateral do time do Botafogo na década de 1960.

O encontro com Moreira não foi somente no juvenil. Logo depois de subir para a equipe profissional, o agora treinador Zagallo abordou o lateral, então juvenil, na concentração e lhe fez uma proposta. Conforme informações do ex-jogador, o Velho Lobo mudou a sua vida em todos os sentidos. Para ele, o treinador aliava a sensibilidade e a energia ao mesmo tempo.

– Teve uma passagem importante que quando eu estava na concentração do juvenil, ele me encontrou em um domingo e perguntou o que eu estava fazendo. Eu almoçava na concentração. Foi quando ele falou que eu iria para o time de cima. Como vou jogar como todos aqueles monstros do futebol? Jair, Manga, Ferretti, Carlos Roberto…Além de um cara inteligente e que via as coisas muito mais à frente, uma coisa que sempre me chamou a atenção foi a humildade dele – relembra Moreira.

Consagração em 1970

Com uma passagem vitoriosa pelo Botafogo, Zagallo mudou de patamar na carreira como treinador. Aquele rapaz franzino que ficava vermelho quando dava instruções, virou um técnico de porte, que sabia tirar o melhor dos jogadores. E não era qualquer jogador. Tinha Gérson, Jairzinho, Carlos Roberto, Manga, Ferretti, Roberto, Moreira entre outros. Um homem objetivo, e muito educado, sabia o que queria sem precisar usar palavrões.

Por isso, se credenciou para dirigir a Seleção Brasileira, em 1969. Depois da demissão de João Saldanha por conta de divergências com o governo militar, o Velho Lobo chegou com moral para levar o time ao Mundial de 1970. Vale destacar que o Brasil vinha de uma Copa muito aquém do esperado em 1966. Ou seja, a pressão sobre os ombros do treinador era grande. Jairzinho, o Furacão da Copa de 70, lembrou a chegada de Zagallo.

– A principal mexida que ele fez no time foi jogar com quatro ou cinco números 10 no time. Lembro que quando ele chegou no primeiro dia falou que ali só tinha craque e que o time dele estava escalado. A única forma de mudar o time seria se alguém se machucasse ou fosse expulso. Isso deu tranquilidade pra todo mundo – disse.

Jairzinho falou sobre a montagem do time com ele, Pelé, Tostão, Gérson e Rivellino. Todos camisas 10 em seus respectivos clubes. Ao relembrar os fatos do Mundial do México, o Furacão da Copa tira uma conclusão:

– Para mim, o Zagallo foi o grande revolucionário de sistemas. Todos os times jogavam no 4-2-4 e ele passou a jogar no 4-3-3. Nesse esquema, se privilegiava a parte intermediária para o ataque. Além disso, os laterais ficavam mais protegidos com uma ou até duas camadas ou linhas, antes de chegar até eles. Realmente, era um homem que via muito à frente.

Legado do Mundial de 1970

O técnico René Simões vai muito além quando fala sobre Zagallo. Como treinador, ele reconhece os feitos do Velho Lobo direta e indiretamente no futebol brasileiro. René considera a Seleção de 1970 o maior time de futebol de todos os tempos. Conforme as suas declarações, aquele time era perfeito, mas não somente em campo na prática, como também em todo o processo de sua concepção, desde a montagem da comissão técnica à preparação.

– A Seleção de 1970 é a mais perfeita para mim. Ganhou o título da forma que foi, mas em campo a forma como jogava, o sistema de jogo, com o Clodoaldo fazendo um terceiro zagueiro para o Carlos Alberto poder subir, a saída do Pepe que era ótimo, mas o Rivellino encaixava melhor naquele esquema. O Paulo Cezar Caju e o Marco Antônio ficaram de fora para o esquema do Zagallo dar certo – afirmou para depois completar:

– A comissão técnica com Cláudio Coutinho, Admildo Chirol, Carlos Alberto Parreira, a preparação no México para não sentir a altitude. Aquela seleção e aquele título tinha o dedo do treinador, da comissão técnica, muitas cabeças pensando em um só objetivo. Além disso, o tricampeonato foi um recado para o mundo dizendo que o Brasil tinha treinador de futebol.

É importante destacar, então, que René Simões acredita que os títulos mundiais da Seleção em Copas do Mundo sempre abriram espaço para os profissionais brasileiros. Ou seja, o Velho Lobo deixou as portas abertas para os demais profissionais trabalharem fora do Brasil. Mais um legado que Zagallo deixou para o futebol brasileiro e seus segmentos, sejam pela parte técnica, física ou até mesmo na parte de comunicação.

Título histórico como despedida

É bem verdade que a vida profissional de Zagallo não foi somente de vitórias, por mais inusitado que isso possa parecer. Em sua carreira, talvez, a derrota mais dolorosa tenha sido na Copa do Mundo de 1998, na França. Naquela ocasião, o Brasil vinha do tetracampeonato quatro anos antes, portanto, era favorito com sobras. No Mundial, chegou à final, mas sem o brilho de outros times comandados pelo Velho Lobo. Assim, o resultado não foi o esperado: um 3 a 0 para os donos da casa, até então, a maior derrota da História da Seleção Brasileira em Mundiais.

A desconfiança e o etarismo de grande parte da imprensa precisava de um golpe contundente, um título incontestável depois do revés de 98. E ele só veio em 2001, um tricampeonato com o Flamengo, justamente o primeiro de seus grandes amores no futebol. Entretanto, meses antes, essa “última dança” na Gávea só aconteceu por conta de um empurrão. Luiz Penido, chefe de esportes e locutor da Rádio Tupi, com mais de 50 anos de carreira, explica como foi essa situação.

– O Zagallo só treinou o Flamengo por minha causa. Tudo começou em 2000, quando o Flamengo não vinha bem das pernas. O presidente do clube era o Edmundo Santos Silva e recebi uma ligação dele me informando que ele tinha tentado o Felipão e o Oswaldo Oliveira para o clube. Os dois negaram. Como eles não queriam levar outro não para se expor, me pediram uma ajuda – revelou.

Ligação em restaurante selou o acordo

A indicação do nome de Zagallo para o então vice-presidente do Flamengo, Júlio Lopes, em um restaurante no bairro de Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro, se deu por vários motivos. O primeiro, segundo o jornalista, a competência e a habilidade de lidar com estrelas. Naquele momento, o elenco do Rubro-Negro contava com Petkovic e Edílson, principais estrelas e que não se davam. Depois, pela competência em acertar times.

– Eu disse que o único capaz de fazer os jogadores ouvirem sem titubear era o Zagallo. Então, liguei para ele e perguntei se eu poderia dar o telefone para conversarem. Portanto, a partir daí eles negociaram e o Zagallo e o Flamengo foram felizes – relembrou o jornalista.

A estreia do Velho Lobo, ou melhor, a reestreia como treinador foi contra o Vasco em uma vitória por 4 a 0, no Maracanã. Então, no ano seguinte, venceu a Taça Guanabara e foi para a decisão do Carioca. Vencedor dos torneios de 1999 e 2000, o Rubro-Negro encarava pela terceira vez consecutiva o rival Vasco, atual campeão brasileiro e da Mercosul naquela altura. Após perder o primeiro jogo por 2 a 1, só uma vitória por dois gols de diferença dava o tri para o clube da Gávea. Então, ele veio.

Edílson e Petkovic, exatamente as duas estrelas que rachavam aquele elenco, marcaram os gols que deram mais um título importante ao Velho Lobo. O gol marcante do sérvio, aos 43 minutos do segundo tempo, deu ainda um tom mais emocional ao título que, dias antes, já estava envolto da energia do treinador. Exatamente o que Zagallo sempre aliou em seus times. A despedida do treinador ainda teve o título da Copa dos Campeões meses depois, o que agigantou ainda mais a já gigante carreira do Velho Lobo.


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