Quebrando Tabu: Estudo revela desempenho de atletas trans em vôlei

Leonardo Alvares, pesquisador do Centro Universitário São Camilo, promove pesquisa inédita sobre mulheres trans atletas amadoras de vôlei e revela aspectos físicos, nutricionais, psicológicos e de performance em comparação com atletas cis

Com o objetivo de responder se as mulheres transgênero (que se identificam com o gênero oposto ao atribuído ao nascer) submetidas ao esforço físico teriam as mesmas capacidades desportivas que as mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído ao nascer), um grupo de pesquisadores do Centro Universitário São Camilo realizou uma pesquisa inédita no mundo com atletas amadoras de vôlei e revelou importantes aspectos físicos, nutricionais, psicológicos e de performance.

Realizado por Leonardo Alvares, professor da Faculdade de Medicina do Centro Universitário São Camilo, e integrado por professores de Nutrição, Psicologia, Fisioterapia e Biomedicina da mesma instituição, o estudo busca compreender se as mulheres trans, nascidas biologicamente homens, apresentam alguma vantagem esportiva em comparação com as mulheres cisgênero. O enfoque específico recai sobre atletas de vôlei, tornando-se o primeiro estudo global a abordar diversas facetas da performance física de mulheres trans nesse esporte.

O pesquisador Alvares, responsável pelo estudo, destaca a abrangência multidisciplinar da pesquisa envolvendo vários professores experts em saúde e exercício, o que possibilitou, dessa forma, incluir avaliações de salto, capacidade cardiopulmonar, força, nutrição, saúde psicológica e até o impacto dos hormônios no funcionamento celular. Os resultados proporcionam uma visão abrangente e inovadora sobre o desempenho atlético das mulheres trans.

Analisando 19 mulheres transgênero, 27 mulheres cisgênero e 23 homens cisgênero, todos jogadores de vôlei, o estudo compara atletas transgênero bem treinadas com mulheres e homens cisgênero da mesma faixa etária, índice de massa corporal e nível de atividade física semelhantes. 

Surpreendentemente, mulheres trans e cis da mesma altura apresentaram índices semelhantes de massa muscular, ambos inferiores aos homens cis.

O destaque do estudo revela que, durante a atividade física, não há diferença significativa na força e no consumo de oxigênio entre mulheres trans e cis, embora o desempenho ainda seja inferior ao dos homens cis.

Além dos aspectos físicos, a pesquisa aborda a questão psicológica, evidenciando que as atletas trans frequentemente se sentem excluídas e enfrentam o preconceito no esporte, apresentando medo de agressões.

A relevância do estudo é enfatizada pelo pesquisador, que destaca a necessidade de mais pesquisas específicas sobre atletas trans, incluindo análises por modalidade esportiva e consideração da idade de início da terapia hormonal. O objetivo é pautar uma discussão justa e pautada em dados sobre a participação de mulheres trans no esporte.

Confira entrevista completa com o pesquisador:

1.        Qual a principal relevância deste estudo para o esporte brasileiro?

Prof. Leonardo: Esse é o primeiro estudo no mundo que avalia de forma específica mulheres trans que são jogadoras de voleibol em relação a vários aspectos de performance física, como a capacidade de salto, a força e a capacidade cardiopulmonar. Além disso, existem outros aspectos também que foram avaliados nesse estudo que há muito pouco dado na literatura, seja em população trans atleta ou seja na população trans geral, não atleta, como dados relacionados a aspectos nutricionais e psicológicos. No caso do nosso estudo, por se tratar de atletas, esses dados nutricionais e psicológicos foram avaliados de modo a verificar de que forma eles impactam na performance das atletas. Esse estudo também traz, pela primeira vez, dados sobre metabolômica, que são aqueles referentes ao funcionamento celular e podem estar alterados pelo uso dos hormônios.

2.        Você acredita que o estudo pode contribuir com uma consciência social acerca das atletas trans e, mais que isso, para o combate à transfobia?

Prof. Leonardo: Acredito que sim, pois quanto mais informação sobre um determinado assunto a gente leva para a população, falando a respeito de certo tema específico, mais claro fica para todo mundo, menor é o preconceito que a população pode ter. Em relação à transfobia não é diferente. Quanto mais informação levarmos à população geral, mais a gente dissemina nas mídias, nos órgãos, nos veículos e menor é o preconceito relacionado a ele.

3.        De acordo com a sua pesquisa, você acredita que atletas trans têm vantagem esportiva sobre atletas cis?

Prof. Leonardo: Essa é uma dúvida científica e também social. Como pesquisador, do ponto de vista científico, eu estou justamente tentando trazer essa resposta com os dados analisados. Porém, nós temos que ser claros. Antes de entrar na resposta específica, eu gostaria de levantar alguns temas. Quando falamos de esporte, cada um tem as habilidades específicas que esse próprio esporte utiliza. Como assim? Há esportes que são mais de força, há esportes que levam mais em consideração a capacidade cardiopulmonar, há esportes que exigem mais as capacidades motoras finas e assim por diante. E também falo a respeito da dificuldade que se possui atualmente em realizar as verificações científicas das capacidades desportivas da população trans, porque é muito difícil encontrarmos um time ou um número razoável de atletas transgênero em que possamos fazer essas análises científicas que tenham um número razoável de avaliados, para termos realmente dados estatísticos relevantes.

Então, dito isso, eu vou falar a respeito do estudo em específico. Ele foi feito com atletas de vôlei, ou seja, que têm habilidades específicas e aspectos específicos relacionados a esse esporte, então não podemos extrapolar isso para outros esportes, não podemos extrapolar esses dados para outras modalidades. Então, falando em relação ao voleibol, o que nós vimos? Que as mulheres transgênero apresentaram níveis de altura de salto e níveis de força muscular semelhantes às mulheres cisgêneros avaliadas no nosso estudo. Porém, temos que deixar aqui de forma bem clara que, apesar de um dos critérios de pareamento ser níveis iguais de atividade física por ferramenta validada internacionalmente, a frequência de treino das mulheres cis era maior do que a frequência de treino das mulheres trans. Em relação à capacidade aeróbica, as mulheres transgênero apresentaram níveis discretamente maiores se comparadas à capacidade aeróbica das mulheres cis.

4.        Você identificou algum motivo para impedir que uma mulher que passou pelo processo de mudança de sexo antes da puberdade participe de campeonatos/jogos com mulheres cis?

Prof. Leonardo: Neste caso, a mulher transgênero foi seguida desde o início da puberdade e, ao ser realizado o bloqueio puberal durante a puberdade, ou seja, ela não desenvolveu as características sexuais secundárias masculinas relacionadas à testosterona. Depois, ela fez a terapia de transição de gênero para o gênero feminino com o estrógeno, hormônio feminino, e não há motivo para que ela seja impedida de competir, uma vez que foi realizado o bloqueio puberal e ela não foi exposta à testosterona durante a puberdade. Para ficar mais claro: ela não desenvolveu aspectos físicos e também performance relacionada ao gênero masculino, uma vez que ela foi bloqueada e foram dados em seguida os hormônios femininos para ela. O corpo da mulher trans desde a puberdade se desenvolveu como um corpo feminino, tanto em sua estrutura quanto em suas capacidades, então não há motivo para esse impedimento.

5.        Quais são os próximos passos acerca desse tema e por que você considera importante?

Prof. Leonardo: Sim, há previsão de novos estudos com atletas trans, sobretudo incluindo, também, homens transgênero. A questão das mulheres trans tem sido mais tocada do ponto de vista social e também científico em virtude das dúvidas sobre possíveis vantagens dessas mulheres em relação às mulheres cis no esporte. Mas não podemos esquecer dos homens transgênero, que também passam por uma terapia de transição corporal, são expostos a hormônios, no caso os hormônios masculinos (a testosterona), e não se sabe como isso impacta também na sua performance desportiva.

Então, o próximo passo é também aumentar o estudo para a população de homens transgênero, e fazer estudos relacionados a outros esportes, para tentarmos ter dados de forma mais clara sobre as habilidades que esses outros esportes utilizam. Por exemplo, estender para o basquete, para o futebol, para diversos outros esportes que utilizam outras habilidades, outras capacidades, e aí precisaríamos ver como é o comportamento do corpo trans feminino e masculino nesses aspectos.

6.        O que o levou a protagonizar este estudo?

Prof. Leonardo: Há uma grande dúvida social a respeito das mulheres trans no esporte, sobre a capacidade delas de serem maiores do que as mulheres cis. Porém, antes da chegarmos nessa resposta, sobretudo na alta performance do esporte que envolve vidas de atletas que treinam para isso e é a profissão deles e em que há interesses econômicos da indústria do esporte, temos que pensar na população trans geral, na sociedade, não atleta, na sua relação com a atividade física. Há vários estudos mundiais que mostram que a população trans tem menos acesso ao exercício físico, seja por barreiras, como inclusão em grupos, a roupa utilizariam para praticar o esporte, ao banheiro utilizariam na academia ou no centro esportivo. Então, há várias barreiras para a inclusão da população trans na atividade física geral, no esporte em geral.

Sendo assim, uma vez que a população trans está mais afastada da atividade física, ela também não tem os benefícios do exercício para o ser humano em geral. Benefícios corporais em relação à saúde física e à própria saúde mental. Sabemos que o exercício melhora, por exemplo, índices de ansiedade e depressão. E é um bom modo de inclusão social.

Como a população trans tem dificuldade no acesso à atividade física, as pessoas acabam perdendo essa oportunidade que o exercício proporciona. Uma outra coisa também que eu queria dizer é que, uma vez que há essa dificuldade da inclusão da população trans na atividade física, seja no colégio ou na faculdade, eles também chegarão menos à alta performance. Porque se eles não têm oportunidade de praticar durante a adolescência ou a vida adulta, ou mesmo durante a infância, eles não têm a oportunidade de desenvolver essas capacidades e técnicas esportivas a fim de chegar no esporte de alta performance.

Sempre chama atenção que estamos preocupados com o pico do esporte, com o ápice, que é o atleta de alta performance, mas temos um grande problema ainda social aqui que abrange a maioria da população trans: a falta da prática de esportes fazendo parte da vida e de todos os benefícios que o esporte pode trazer.


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