Autora negra Márcia Silveira escreve crônicas de inventário em obra de estreia

Lançamento da Editora Penalux, Inventário de Vagas Lembranças é o livro de estreia da escritora e crítica literária carioca

“Minha escrita tem certo tom de desencanto porque muitas vezes é assim que eu encaro a vida essa coisa doida e doída, com acento, como já escrevi uma vez. Mas consigo reconhecer também em minhas palavras um quê de humor, uma graça quase defensiva de quem às vezes precisa se resguardar da fragilidade da vida.”

Trecho do livro

Na primeira das 28 crônicas do livro Inventário de Vagas Lembranças (Editora Penalux, 82 pág) a escritora e crítica literária Márcia Silveira alerta: a obra contém doses de melancolia. A honestidade escancarada da autora pode parecer acintosa num primeiro olhar desatento. No entanto, o aviso é uma prova da generosidade da escritora, que propõe tatear a memória e dar voz a dores, anseios e angústias, e assim, desnudar-se, para oferecer ao leitor um pouco de si a cada página. Na obra, Márcia traz à tona temas bastante comuns, como infância, família e luto, tratando-os de forma singular.

Se a melancolia revela-se prevalente neste que é o primeiro livro da autora, há uma razão de ser. A escritora perdeu a mãe recentemente e a obra reflete inevitavelmente essa morte. Para a autora, dedicar-se à escrita, rememorar infância e adolescência, era uma forma de se aproximar da própria genitora. Ainda assim, Márcia assume que mesmo antes o sentimento sempre esteve em seus escritos, mas havia temor em colocá-lo no papel: “Por algum tempo me senti paralisada na hora de escrever crônicas. Um dos motivos era achar que meus textos eram muito melancólicos.” 

O talento da escritora parece justamente morar nesse paradoxo, como escavar e trazer à luz eventos tristes, refletir sobre eles mas, ao mesmo tempo, não torná-los pesados e exaustivos. A regra parece ser escrever embebida no afeto. As histórias podem conter desencantos, mas a forma como Márcia escreve evidencia as camadas de sentimentos e emoções contidos em seu modo de se apropriar do mundo e ruminar lembranças. “Apesar de minhas crônicas tratarem de experiências pessoais, um texto traz sempre a possibilidade de conexão e identificação com quem lê – e essa é uma das riquezas da literatura”, pondera. 

A autora se destaca pela cadência na escrita de suas crônicas, costurando sua argumentação com coesão e coerência, selecionando as melhores palavras e inscrevendo sua sensibilidade em cada letra. Essa habilidade pode ser apreciada em especial nas seis crônicas intituladas “Efêmeras”. Nelas, expõe sentimentos e pensamentos de forma ainda mais curta, mas sem perder a magia da crônica, evidenciada pela escrita assertiva e terna. Os textos soam quase como rascunhos, lembretes, devaneios, e por isso mesmo ainda mais pessoais e reveladores. 

Ainda que a escritora tenha alertado no início do livro sobre o tom cinzento que a obra pode conter, quem se aventurar pelo Inventário de Vagas Lembranças encontrará outros matizes, e por vezes, até um colorido mais chamativo. A melancolia expressa nas crônicas é contrabalanceada pelo contentamento, bom-humor e alegria que também estampam as páginas da obra. O saldo, ao final, é equilibrado e favorável a quem se dedica a desvendar o livro. 

Escrever: realização do sonho da menina leitora

Aos 12 anos, Márcia Silveira sabia que queria ser escritora. Mais de duas décadas depois o desejo se materializa no lançamento do livro Inventário de Vagas Lembranças. As voltas que a vida deu até a autora concretizar o sonho da infância, no entanto, não são necessariamente motivos de pesar ou descontentamento. Ao contrário: Márcia trilhou um caminho profissional exitoso e que nunca a deixou distante do universo das artes. 

A carioca é graduada em Filosofia e Design Gráfico e pós-graduada em História da Arte. Profissionalmente atuou como fotógrafa. Mais recentemente foi abrindo brechas e adentrando o mundo da escrita e revelando seu talento. Desde 2019 escreve críticas literárias no jornal Diário do Rio e em 2022 lançou a newsletter Página23. 

O interesse por crônicas nasce na pré-adolescência a partir do contato com a coleção Para Gostar de Ler, da Editora Ática. Na época dizia que seria escritora por gostar do humor e da espontaneidade que aqueles textos continham. Hoje, ampliou o repertório de interesses literários. “Leio muito, mas tenho me sentido especialmente atraída por narrativas que unem biografia e ensaio, como as de Annie Ernaux e Felipe Charbel. Na área da crítica, admiro a escrita do José Castello e do Paulo Roberto Pires”, esclarece. 

Ainda assim, a autora faz uma ressalva. “Acho muito emblemático que meu primeiro livro publicado seja de crônicas. É um retorno ao sonho de infância”. 

Confira um trecho do livro:

Se não me lembro, a mente inventa. Era mesmo dourado o pacote de cigarros do meu pai? A casa era rosa? Minha mãe estava comigo na roda gigante? Aquela penteadeira era escura? De tanto inventar: um inventário. Minhas palavras tentam alcançar as certezas que a mente me impede de ter. Um levantamento dos bens que o tempo vive tentando me roubar. Ou uma tentativa afetiva de evitar que uma existência inteira se perca nos desvãos do cotidiano.


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