Para salvar a Amazônia, Lula tem de saber a quem pertence a floresta
Ao longo do Rio Madeira, em meio à floresta tropical, o governo brasileiro tem confiscado e explodido barcaças. As balsas pertencem a garimpeiros que buscam ouro ilegalmente. Eles dragam sedimento do leito do rio e acrescentam mercúrio, que forma amálgamas em torno dos grãos de metal precioso. Depois, eles esquentam o tacho, para o mercúrio evaporar — emitindo um gás tóxico — e sobrar apenas ouro puro.
O presidente brasileiro anterior, Jair Bolsonaro, filho de garimpeiro, esforçou-se pouco para impedir que a mineração ilegal poluísse os ecosistemas amazônicos. Na realidade, ele se empenhou no contrário: ao apoiar consistentemente madeireiros, garimpeiros e fazendeiros que estão destruindo a floresta tropical, ele transformou o Brasil em pária global. Seu sucessor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está determinado em salvar a Amazônia e a reputação do Brasil. Desde que assumiu, em janeiro, Lula tem combatido com força; alguns diriam brutalmente.
“Eles não deixaram a gente pegar nossas coisas. A geladeira, o fogão, as camas, o ventilador — nem nossas roupas. Explodiram a bomba com tudo dentro, destruíram tudo”, afirma Silvina, cujos filhos tiveram sua barcaça de garimpo confiscada em novembro. Agentes do Ibama, um braço do Ministério do Meio Ambiente encarregado de proteger a Amazônia, ignoraram o choro de mulheres e crianças conforme despedaçaram as economias de vida inteira da família com a explosão, esbraveja Silvina.
Essas táticas musculares têm surtido um efeito. “Os negócios vão mal”, afirma o gerente de uma loja que vende kits de garimpo em Humaitá, uma cidade voltada ao garimpo do ouro. O estabelecimento está quase vazio. Quase ninguém aparece para comprar suas bombas, capacetes, canos plásticos, cordas, roldanas e chaves de boca. A mineração artesanal na região caiu 70%, estima ele. “Nós estamos apavorados”, afirma João, dono de uma barcaça ainda não explodida, uma estrutura instável de madeira que range e envenena constantemente um trecho de rio em que botos cor de rosa fazem brincadeiras. “Lula é um mau presidente.”
Conforme sugerem essas reações enfurecidas, os esforços de Lula em preservar a Amazônia estão fazendo a diferença. O ritmo do desmatamento caiu em aproximadamente 50% nos primeiros oito meses de 2023 em comparação com o ano anterior, de acordo com imagens de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Isto é importante. A Amazônia contém 40% das matas tropicais remanescentes no mundo, e 25% da biodiversidade terrestre do planeta. A floresta amazônica é um depósito gigantesco de carbono, portanto sua destruição acelera o aquecimento global. Suas árvores emanam 20 bilhões de toneladas de umidade nos “rios voadores”, que por sua vez devolvem a água para o bioma florestal e regam terras agrícolas em toda a América do Sul.
Cerca de 18% da Amazônia brasileira já desapareceu até aqui. Cientistas temem que um momento crítico pode ocorrer quando a destruição atingir 25%: o sistema de rios voadores poderá parar e a floresta poderá deixar de se autossustentar — o que ocasionaria uma catástrofe global. Portanto, reduzir o ritmo do desmatamento, apesar de bem-vindo, não é suficiente. As motosserras ainda estão rugindo: 3,7 mil quilômetros quadrados da Amazônia brasileira desapareceram nos primeiros oito meses de 2023. A estiagem fez secar partes de seus rios, incêndios florestais alcançaram recordes e uma onda de calor colocou em risco árvores e humanos.
Lula prometeu pôr fim no desmatamento até 2030. Para ser bem-sucedido, ele terá de superar muitos obstáculos: políticos, práticos e econômicos. Mas, acima de tudo, terá de lidar com um problema sistêmico: o desacato às leis. O Brasil tem muitas regras federais sensatas para proteger a floresta amazônica, mas sua aplicação é lamentável. Em áreas que dependem de garimpos, criações e cultivos para colocar comida na mesa, autoridades estaduais e municipais com frequência fazem vista grossa a crimes ambientais ou emitem autorizações para atividades ilegais.
Jogar mercúrio no rio é ilegal, assim como quase toda mineração artesanal na Amazônia. Mesmo assim, Manuel, outro garimpeiro cuja barcaça foi explodida, afirma ter “documentos para a draga, documentos para tudo”. Ele insiste que a operação que lhe confiscou a balsa foi ilegítima. Provavelmente ele está errado — mas pode ter convencido a si mesmo de que está certo.
Na Amazônia, até uma resposta básica sobre quem é dono do quê é enlouquecedoramente turva. Pelo menos 22 agências do governo federal e de outras instâncias governamentais podem registrar reivindicações de posse de terra. Essas agências “não conversam realmente entre si”, afirma Brenda Brito, da ONG Imazon. Portanto, reina a grilagem. Segundo uma estimativa, há alegações de sobreposições em aproximadamente metade das terras registradas no Brasil.
Para perceber o que isso significa no campo, considerem uma pequena aldeia próxima a Lábrea, uma cidade no oeste do Estado do Amazonas, no fim da Rodovia Transamazônica, que atravessa 4 mil quilômetros da costa até o centro da floresta. Duas dúzias de famílias indígenas vivem em Novo Paraíso, do cultivo de frutas tropicais. A aldeia fica dentro de uma reserva, onde ninguém pode reivindicar posse privada da terra. Mas forasteiros têm registrado reivindicações de posse em terras dentro da reserva e nas proximidades.
O cacique da aldeia, Marcelino Apurinã, afirmou que a grilagem foi especialmente intensa quando Bolsonaro era presidente. Intrusos começaram a abrir estradas de terra dentro da reserva e tirar madeira. Os indígenas só conseguiram expulsar os invasores depois de acionar a Funai, a agência federal de proteção aos povos originários.
Parte do problema era político: Bolsonaro encorajava os grileiros deixando claro que estava do seu lado. Como presidente, ele manteve a promessa de campanha de não demarcar “nenhum centímetro mais” de terra indígena. Ele também cortou o orçamento de agências encarregadas de proteger direitos de indígenas. Mas mesmo após Bolsonaro deixar a função, o problema não está resolvido. As reivindicações de posse de terra duvidosas em reservas como a de Apurinã continuam registradas.
Em junho, quando Lula relançou um plano para salvar a Amazônia, a iniciativa incluiu um esforço para regularizar títulos de terras. Ele promete integrar os vários cartórios de registros civis em um sistema coerente e usar monitoramento por satélite para detectar atividades ilegais. Isso, combinado a um policiamento incrementado e ajuda econômica para os moradores dos Estados amazônicos, deverá pôr fim ao desmatamento até 2030.
A tarefa é colossal. Em um relatório recente, o Banco Mundial cita uma série de distorções que a dificultam. As “terras não designadas” são uma delas. Aproximadamente 42% da Amazônia brasileira são classificados como áreas protegidas ou reservas indígenas. Outros 29% são propriedades privadas, e os donos são obrigados a conservar 80% das matas em suas terras. Mas 29% (1,2 milhão de quilômetros quadrados, ou quase duas vezes a área do Texas) são terras “não designadas”, ou seja, terras públicas que ainda não foram confirmadas como reservas nem designadas para outro propósito. Essas terras são “os principais focos de desmatamento”, afirma o banco. Cerca de 116 mil quilômetros quadrados de terras não designadas eram reivindicados como propriedades privadas até 2020, apesar da manobra ser ilegal.
Propriedade e posse de terra é algo instável na floresta amazônica. Donos com frequência não têm escrituras mesmo de terras que o governo lhes entregou nos anos 70 (quando havia ditadura militar). Isso dificulta a aplicação de leis ambientais, já que com frequência não fica claro quem é o responsável por algum determinado trecho de floresta. Isso também estimula grileiros a usar força bruta. Pelo menos 47 pessoas foram mortas em confrontos rurais em 2022, de acordo com a ONG Comissão Pastoral da Terra.
Outra distorção é um sistema perverso de impostos e benefícios. Um complicado imposto rural chamado ITR é fácil de sonegar e encoraja fazendeiros a cultivar fatias maiores de suas terras do que cultivariam de outra forma, mesmo que isso signifique derrubar floresta. Subsídios agrícolas são menores no Brasil do que em muitos outros países, equivalendo a 0,35% do PIB, mas são destinados desproporcionalmente para criadores de gado na Amazônia.
Cálculos do Banco Mundial mostraram que, quanto mais cobertura florestal um Estado tem, maior é a fatia de subsídios de crédito destinados a criadores de gado. Esses benefícios tornam terras agricultáveis mais valiosas e portanto oferecem incentivo para as pessoas criarem mais terras agricultáveis derrubando e incendiando a mata.
Quando Estados vendem florestas públicas para atores privados, vendem barato. Em média, em 2019 eles cobraram 15% do valor de mercado. Mesmo o governo federal cobrou apenas 26%, de acordo com um artigo de Brito e outros. O Estado do Tocantins vendeu terras naquele ano a aproximadamente US$ 1 o hectare, quando 1 hectare valia mais de US$ 2 mil.
No passado, pessoas que ocuparam terras ilegalmente conseguiram permissão, depois de muitos anos, para obter um título formal a preços insignificantes como esses. Isso encoraja invasores café pequeno e grandes fazendeiros a avançar sobre terras não reivindicadas ou escassamente povoadas, na esperança de que o Estado lhes permitisse comprá-las barato.
Muitas autoridades na Amazônia aprovam esse sistema. Persiste uma ideia de que a floresta tropical é uma fronteira a se conquistar: o que os antigos regimes militares chamavam de “uma terra sem homens para homens sem terra”.
Eles vieram, serraram e conquistaram
Mais amplamente, o policiamento tem sido tão frouxo que até criminosos notórios saem impune. Não é preciso dirigir muito pela Transamazônica para ver trilhas nas laterais abertas por madeireiros ilegais ou sufocar-se em espessas neblinas de fumaça quando os fazendeiros estão abrindo novos campos com as chamas. Eduardo Rachid, gerente de uma loja de selas, medicamentos para o gado e outros insumos rurais em Lábrea, confirma que o comércio está “muito movimentado”. Fazendeiros capacitados vindos de Estados vizinhos estão chegando à região atrás de terras baratas, afirma ele.
Na teoria, carne de bois criados em terras desmatadas recentemente não pode ser comercializada. Certamente os supermercados da Europa estão apreensivos em relação à carne brasileira. Mas a maior parte dessa produção é vendida dentro do Brasil, onde é fácil legalizar a variedade ilícita. Um sistema de monitoramento registra apenas o último lugar onde o boi viveu, portanto um fazendeiro ilegal pode simplesmente vender seus bois para outro fazendeiro legal, que então os manda para o abatedouro. Um criador de gado no Estado do Pará, no norte do Brasil, afirma que não tem como saber se os bois que ele compra foram criados legalmente.
Outro truque para lavar a carne, afirma um funcionário de uma fazenda de gado próxima a Lábrea que prefere permanecer anônimo, é um açougueiro comprar um boi legalizado e manter o selo oficial sobre sua pele no freezer. Ele pode mostrar a peça quando um fiscal aparecer e fingir que a carne ilegal que ele está vendendo pertence a um boi legalizado.
Lula está tentando arrumar parte dessa bagunça jurídica. Sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirma que o primeiro passo é analisar todas as terras não designadas e definir que partes deveriam se tornar reservas indígenas ou áreas de conservação. Essas áreas “não serão mais usadas para desmatamento”, disse ela à The Economist.
Uma comissão técnica, cujo trabalho foi congelado sob Bolsonaro, voltou a trabalhar. Cerca de 30 mil quilômetros quadrados estão agora prestes a ser designados, afirma ela, e outros 68 mil quilômetros quadrados estão sendo analisados. Desde janeiro, Lula emitiu decretos reconhecendo oito reservas indígenas. O objetivo final é integrar todos os registros de terras existentes para evitar sobreposições, afirma Silva, e tornar o sistema transparente para todos.
A dificuldade é o que Silva chama de uma “complexidade” na “disposição dos Estados (…) de participar”. Alguns governos estaduais são “resistentes”. O que não surpreende. Os governadores bolsonaristas não cederão, sem alguma briga, o poder de alocar terras para pessoas capazes de explorá-la contra os desejos de um governo federal de mentalidade conservacionista.
Enquanto isso, legisladores federais da bancada ruralista, amigos dos fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, estão tentando aprovar um projeto de lei que pretende diminuir direitos de indígenas a terras. Uma cláusula crucial impede o reconhecimento de terras indígenas se as tribos em questão não conseguirem provar que ocupavam o local antes de 1988, ano em que a Constituição brasileira foi promulgada.
A Suprema Corte considerou inconstitucional esse marco temporal, e Lula o vetou. Mas o Congresso poderá derrubar seu veto. Os políticos que bloqueiam a reforma respondem a forças econômicas. Não são apenas os grandes fazendeiros famintos de terras que os bancam, apesar de o fazerem; as pessoas comuns que ganham a vida derrubando e poluindo a floresta também votam.
Manuel, o garimpeiro ilegal cuja barcaça foi explodida por agentes federais, diz que votou em Lula no ano passado porque se lembrava dos generosos programas de bem-estar social de seu primeiro mandato. Nunca lhe ocorreu que um presidente defensor dos trabalhadores fecharia seu negócio. Agora ele está furioso. “Eles tratam a gente como bandido”, afirma ele. E “agora não temos nem o que comer”.
Garimpeiros que não conseguem garimpar buscarão outras maneiras de ganhar a vida. Na Amazônia, as oportunidades são escassas. Mesmo as principais rodovias com frequência não têm pavimento, um problema que Lula sugeriu que tentará resolver, apesar de objeções de ambientalistas. A população local tem baixa escolaridade. Dois terços das crianças de 10 anos na Amazônia não sabem ler uma frase simples, em comparação a 50% no Brasil como um todo. A pobreza é generalizada. Muitos dos garimpeiros cujas barcaças foram destruídas foram trabalhar em fazendas na floresta, afirma o gerente da loja especializada em material de garimpo em Humaitá.
Apurinã, o cacique, parece oferecer um exemplo de como as pessoas podem viver de maneira sustentável na floresta. A aldeia dele cultiva açaí, banana, abacaxis que dão um suco saborosíssimo e cupuaçu, uma fruta que é usada em cosméticos finos. Uma entidade sem fins lucrativos ensinou a policultura à tribo. Uma vez por semana, os indígenas vendem produtos da floresta na cidade.
O trabalho é duro, por ganhos modestos e em meio a temperaturas cada vez mais altas. “Antes a gente conseguia trabalhar o dia inteiro, agora só consegue trabalhar meio dia porque o sol bate mais forte”, afirma ele. Situados próximos a uma cidade, os indígenas conhecem comodidades manufaturadas.
Apurinã veste um impressionante cocar de penas de papagaio e um colar com um dente de onça. Mas também aprecia o conforto de uma camiseta de algodão, sabe como é prático usar galochas e conhece a conveniência das garrafas plásticas. Ele gosta de viver um estilo de vida híbrido, em grande parte tradicional mas em intercâmbio com o mundo moderno.
Qual é a alternativa?
Contudo, nem todos os indígenas veem a coisa dessa maneira. “Muitos” foram trabalhar em grandes fazendas, afirma Apurinã. Ele estima que as pessoas em sua tribo consigam de R$ 50 a R$ 60 por dia de trabalho. As grandes fazendas pagam de R$ 80 a R$ 100. Alguns indígenas “querem fazer dinheiro rapidamente”, afirma ele. Cultivar safras próprias leva tempo. Quando as pessoas trabalham para os outros, em contraste, “o chefe sempre consegue te pagar na hora”.
O encanto do dinheiro rápido impele alguns a aceitar empregos ilegais. Um fazendeiro contratou dezenas de homens com motosserras e pagou salários fartos para eles derrubarem uma faixa de floresta, afirma um motorista local. A seca dificultou a pesca, diz o pescador Jean, então muita gente de sua vizinhança foi trabalhar nos novos pastos que estão sendo abertos na floresta.
O valor de preservar a Amazônia é imenso para o mundo. Estimativas variam bastante, mas até um conservador do Banco Mundial o coloca em US$ 317 bilhões ao ano, sete vezes mais que o valor capaz de ser extraído da floresta tropical por madeireiros, fazendeiros e garimpeiros. Contudo, enquanto os benefícios da conservação espalham-se por todo o mundo, os lucros do desmatamento vão diretamente para os bolsos dos homens que organizam as gangues com motosserras, e benefícios transbordam para as economias locais. Mudar esses incentivos requererá tanto financiamento externo quanto maneiras inteligentes de distribuir dinheiro.
Lula quer que os estrangeiros contribuam. Em 13 de novembro, seu ministério das finanças emitiu US$ 2 bilhões em títulos verdes. Um Fundo Amazônia apoiado por doadores levantou US$ 1,3 bilhão. “Isso é muito pouco em face à necessidade, mas é um instrumento pioneiro”, afirma Silva. Na COP, nesta semana, Lula certamente pedirá mais.
A batalha para salvar a Amazônia é um número de equilibrista. Desagradáveis concessões mútuas são inevitáveis. Se Lula pressionar com força demais, pode provocar reações negativas e perder a próxima eleição para um oponente amigo dos madeireiros. Mas se não pressionar com força suficiente, a meta de pôr fim ao desmatamento até 2030 permanecerá inalcançável.