Pacientes com epilepsia resistente a medicamentos aguardam SUS disponibilizar terapia que teve sua incorporação determinada pelo Ministério da Saúde há cinco anos

Pacientes que não têm convênio precisam recorrer à justiça para terem acesso ao tratamento que já deveria estar no sistema público de saúde 

Pacientes brasileiros com epilepsia resistente a medicamentos aguardam há cinco anos a disponibilização de uma terapia moderna e pouco invasiva para sua condição no Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar de o Ministério da Saúde ter decidido incorporar a terapia VNS (terapia de estimulação elétrica do nervo vago) – um tipo de marca-passo cerebral para pacientes com epilepsia resistente a medicamentos e sem indicação para cirurgia ressectiva no SUS, em setembro de 2018, o produto ainda não se encontra disponível no sistema público de saúde.

“É triste ver essa situação. Pacientes têm que lutar na justiça por uma terapia que já deveria estar disponível há muito tempo”, afirma Maria Alice Mello Susemihl, presidente da Associação Brasileira de Epilepsia (ABE), uma organização sem fins lucrativos que busca promover a melhora da qualidade de vida das pessoas com epilepsia. “Estamos há anos dialogando com o Ministério da Saúde para resolvermos esse imbróglio. Enviamos até mesmo uma carta à Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES), pois vemos que a não incorporação da terapia ofende todos os profissionais que trabalharam analisando a necessidade da incorporação, os médicos e todas as pessoas que participaram da consulta pública, bem como o direito à saúde de todos os brasileiros”, ela completa.

Acesso

Daniel Braz é pai de Rafael, de 10 anos, que começou a ter crises de convulsão aos seis meses de idade, e dez meses depois foi diagnosticado com uma mutação no gene SCN8A, que causa uma epilepsia de difícil controle. O menino chegava a convulsionar cerca de 50 vezes por dia. Buscando se informar sobre a rara condição do filho, Daniel encontrou um grupo de apoio de pais dos Estados Unidos por meio de uma rede social. Foi ali que ele ouviu falar pela primeira vez sobre a terapia VNS, por meio de testemunhos que mostravam uma série de benefícios nas condições das crianças que passaram pelo tratamento. Com a orientação de um neurologista e viabilização parcial via convênio, Rafael pôde implantar aqui no Brasil a terapia VNS no final de 2015 e, alinhado ao tratamento medicamentoso prescrito, ele não teve mais convulsões.

“Nós costumamos falar que o Rafa nasceu duas vezes. Celebramos duas datas, quando ele nasceu e quando as crises foram controladas”, conta Daniel. “Por isso, quando o paciente está elegível para a terapia VNS, se enquadrando em todos os critérios, essa terapia não deveria ser a última alternativa da lista. Quanto mais cedo ocorrer o controle das crises, melhor. Porém, infelizmente, hoje essa oportunidade é para poucos, porque é um investimento alto. O ideal era que isso já estivesse disponível no SUS, para que mais pacientes conseguissem ter acesso”.

Ana Beatryz, de oito anos, também sofre com epilepsia de difícil controle, resistente a medicamentos, e tem indicação médica para implantar a terapia VNS pelo SUS desde que obteve o diagnóstico, há dois anos. No entanto, a mãe, Ana Luiza da Silva, aguarda até hoje a menina ter acesso ao tratamento pelo sistema público.

“A justiça autorizou, agora a outra parte responsável, o Estado, precisa comprar o equipamento, e ficam dando prazos que simplesmente não cumprem. Já recorri à defensoria pública várias vezes, mas a burocracia é muito grande e demora muito, mesmo tendo urgência no processo. Enquanto isso, minha filha teve uma piora significativa, vive dentro de casa, não consegue andar, brincar, não vai à escola, por conta das crises constantes e porque os remédios são fortes e causam muita sonolência. Se já tivéssemos conseguido o acesso à terapia logo no começo, há dois anos, imagine como a minha filha já não estaria melhor agora?”, denuncia a mãe. “É revoltante. A própria Constituição diz que minha filha tem direito à saúde, assim como qualquer cidadão, mas na prática, por que isso é tão difícil? A cada vez que temos esperança, ela é substituída pela sensação de impotência de não poder ajudar o próprio filho. Como não depende de mim, sinto-me de mãos atadas. A Beatryz sofre, e nós que estamos do lado dela, sofremos junto”.

Disponibilidade

Para garantir a disponibilização das tecnologias incorporadas no SUS, é estipulado um prazo de 180 dias para a efetivação de sua oferta à população brasileira a partir da publicação da decisão no Diário Oficial da União (DOU). No caso da terapia VNS, a publicação no DOU ocorreu em 12 de setembro de 2018. “Os 180 dias venceram dia 12 de março de 2019, mas hoje milhares de pacientes com epilepsia resistentes a medicamentos continuam sofrendo convulsões e hospitalizações desnecessárias”, afirma Maria Alice. Em uma troca de emails questionando o Ministério da Saúde pela demora na disponibilização da terapia VNS, ainda em 2021, recebeu a resposta de que o Ministério está trabalhando no processo de atualização do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Epilepsia (PCDT) para a inclusão da terapia. “Este prazo de seis meses após a publicação no DOU existe exatamente para isso, para que o SUS possa se preparar para esta incorporação. Todo o processo de aprovação foi seguido à risca, com consulta pública, avaliação custo benefício e tudo. Para que serve este processo de aprovação, se após a aprovação não há incorporação? Se o Ministério da Saúde não segue suas próprias determinações, os pacientes devem recorrer a quem?”, questiona Maria Alice.

Em 2023, foi realizada uma nova tentativa de contato em 14 de agosto com a Coordenação Geral de Atenção Especializada (CGAE), que compõe um departamento da SAES. Dez dias depois, a ABE recebeu um email dizendo que a equipe estava elaborando a resposta. Até o momento, não houve nenhuma outra atualização.

A Epilepsia

A epilepsia é uma doença neurológica que afeta aproximadamente 50 milhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que a posiciona como uma das doenças neurológicas crônicas mais comuns no planeta. No Brasil, as estimativas variam de 2 a 3 milhões de pessoas. Ela é caracterizada pela predisposição do cérebro em gerar as chamadas crises epilépticas, definidas por sua vez como a ocorrência transitória de sinais e/ou sintomas devido a uma atividade neuronal síncrona ou excessiva no cérebro.

O tratamento da epilepsia é feito com uso de medicamentos e, quando bem indicados, aproximadamente 70% das pessoas têm as suas crises completamente controladas. Para os refratários existem algumas possibilidades como a dieta cetogênica, cirurgia ressectiva (quando possível) e terapia VNS para aqueles que não são candidatos cirúrgicos – método que infelizmente pacientes do SUS continuam sem acesso, continuando a sofrer com os impactos das convulsões.

“Pessoas com epilepsia refratária, resistentes ao tratamento medicamentoso, têm grande impacto em suas vidas, seja na escola, trabalho, convívio social. Também apresentam maior risco de traumas, queimaduras, necessitam de tratamentos médicos frequentes, exames e até avaliações de emergência no pronto-socorro. Por fim, também apresentam maior risco de morte, não apenas pelas lesões que podem sofrer mas também devido a crises prolongadas, estado de mal epiléptico e morte súbita”, explica a Dra. Carmen Lisa Jorge, médica neurologista do Hospital das Clínicas de São Paulo. Para muitos destes casos, a neuromodulação seria uma opção.

“A neuromodulação através do implante de estimulador do nervo vago (terapia VNS) é um tratamento aprovado há muito tempo. Nos Estados Unidos isso aconteceu em 1997 e no Brasil em 2000. Trata-se de uma opção segura e eficaz, que leva à redução na frequência e intensidade das crises, além de outros ganhos, como melhora na recuperação após crise e até mesmo no humor e comportamento. A melhora acontece de forma gradual após início da estimulação”, afirma Dra. Carmen. “Aguardamos há muito tempo a disponibilização desta alternativa no SUS, porque, para muitos dos nossos pacientes, outras alternativas já foram esgotadas, e essa terapia poderá melhorar sua qualidade de vida”. 

Terapia VNS – Como funciona:

A Terapia VNS usa um gerador, um pequeno aparelho médico como um marca-passo, que através de um condutor envia impulsos elétricos ao eletrodo ligado ao nervo vago esquerdo situado no pescoço, que por sua vez envia impulsos para o cérebro, ajudando a prevenir as alterações elétricas que causam as crises. O nervo vago é um grande elo de comunicação entre o corpo e o cérebro, responsável por enviar impulsos às partes do cérebro.

Procedimento de implante da Terapia VNS:

• O procedimento da Terapia VNS não envolve cirurgia cerebral.

• A cirurgia é geralmente realizada sob anestesia geral, o que pode requerer uma curta estadia no hospital.

• Através de um pequeno corte o gerador de pulso é implantado sob a pele abaixo da clavícula esquerda ou próximo da axila esquerda.

• Um segundo pequeno corte é feito no pescoço para fixar dois pequenos eletrodos ao nervo vago esquerdo. Os eletrodos são ligados ao gerador por um condutor que fica embaixo da pele.

• Após a cirurgia, além das duas pequenas cicatrizes devido às incisões, quase não se pode notar o gerador que apresenta apenas uma leve elevação na pele do peito onde foi implantado.

Além dos estímulos programados que o aparelho realiza, é fornecido um ímã aos pacientes, o qual permite aos pacientes ou cuidadores realizarem ativação do aparelho no momento que percebem o início de uma crise. Por meio da estimulação adicional realizada é possível parar ou diminuir a gravidade das crises epilépticas. A estimulação na hora da crise é um benefício adicional da terapia de estimulação do nervo vago, com objetivo de dar mais qualidade de vida aos pacientes e suas famílias.


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