HUGV e profissionais de saúde indígena compartilham saberes com foco na redução da mortalidade materna

Capacitação em Telepnar para profissionais de saúde indígena

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Esta semana, médicos e enfermeiros do DSEI Médio Rio Solimões e Afluentes estão participando de treinamento sobre uma plataforma de telessaúde

“A gente vem perdendo mulheres. Perdendo por uma coisa muito simples, que é a questão do pré-natal, que é a questão da prevenção”. O relato é de Ercília Vieira, índia tikuna que ocupa um cargo de relevância na assistência à saúde de indígenas no Amazonas. Para além do cargo, Ercília chora uma triste realidade que deveria sensibilizar toda a sociedade: receber a notícia de que mais uma mulher grávida morreu, dessa vez, nas cabeceiras dos igarapés. A morte materna é o óbito de uma mulher durante ou até 42 dias após o término da gestação. Na maioria dos casos (92%), é evitável, mas a desigualdade de acesso à saúde torna tudo mais difícil, principalmente quando se fala em gestantes que moram em áreas remotas da Amazônia e, muitas vezes, precisam percorrer longas distâncias de barco ou avião, para ter acesso a assistência de alta complexidade em Manaus, a capital do Estado.

Para ajudar a reduzir o índice de mortalidade materno-fetal no Estado, especialmente entre os povos da floresta, a telessaúde se traduz em alternativa para salvar vidas. Esta semana, especialistas do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV-UFAM), da Universidade Federal do Amazonas e vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), estão no município de Tefé (localizado a 523 km da capital amazonense), levando conhecimento e tecnologia, que irão facilitar o acesso de adolescentes e mulheres das localidades da região a um pré-natal seguro.

Com o nome de “Telemonitoramento de Pré-Natal de Alto Risco em Regiões Remotas do Amazonas (Telepnar)”, o projeto realizou uma capacitação, que começou na quarta-feira, 26, e segue até esta sexta-feira, 28, no Auditório do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Médio Rio Solimões e Afluentes. Na plateia, o público é formado por 30 pessoas, entre médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. São profissionais que, em sua grande maioria, atuam na ponta: ou seja, convivem diretamente com as precariedades e as dificuldades, nas aldeias e pequenas localidades onde uma gravidez de alto risco pode ser mais complicada, pela dificuldade de acesso a exames e especialistas.

O evento é presencial, mas a capacitação também conta com a presença virtual da médica obstetra Ione Rodrigues Brum, coordenadora do projeto de telemonitoramento para gestantes de alto risco no interior do Amazonas. De forma remota, ela conversou com os participantes diretamente de uma sala da Ufam, em Manaus, durante o treinamento. “Estamos agora num momento do projeto em que estamos envolvendo a população indígena. É muito importante a gente ver a dificuldade do acesso da população indígena a um atendimento de qualidade, de um atendimento de especialidade. A gente entende que isso tem toda uma questão cultural, também uma questão geográfica do acesso deles para que, de fato, tenham um melhor atendimento”, comenta.

Quem compreende bem a necessidade dessa maior aproximação da assistência aos povos indígenas é Ercília da Silva Vieira, índia tikuna e coordenadora distrital de saúde indígena do DSEI MRSA. “A nossa logística é gigantesca dentro do Distrito Solimões e Afluentes, que são 14 municípios. Na maioria dos municípios, não temos internet, não temos condição de ter médico especialista, né? Então é superimportante para nós”, avalia, relembrando as dificuldades que contribuem para engrossar as estatísticas de morte materno-fetal: por falta de um pré-natal, por falta de uma assistência, por falta de um acompanhamento.

“Então, eu, como mulher e como militante do movimento indígena, que defende a bandeira feminina dentro da questão indígena, vejo essa oportunidade como uma oportunidade de salvar a vida das minhas parentes lá na aldeia né? Não é fácil a gente engravidar e não ter uma assistência, não ter uma política pública que contemple a mulher indígena dentro da comunidade”, afirma. Para ela, o projeto desenvolvido pelo HUGV-Ufam deve contribuir muito para a região. “Olha, eu acredito que vai impactar. Nesse sentido que eu acabei de falar sobre salvar a vida da mulher. E o impacto maior é que os nossos profissionais estão pegando essa oportunidade, estão tendo a oportunidade de se capacitar, de aprimorar o conhecimento para ser usado em comunidade, né? É importante que eles levem esse conhecimento para dentro da aldeia para desfazer esse pensamento que pode levar a mulher ao óbito e a criança também. Vai ser muito importante, eu tenho certeza disso”.

Da direita para a esquerda: Ercilia da Silva Vieira, coordenadora do DSEI MRSA; Pedro Elias, vice-coordenador do TelePnar; Daniela Cristina Silva, responsável técnica da Saúde da Mulher DSEI MRSA; e Francisca das Chagas, técnica de enfermagem indígena (divulgação)

Plataforma reúne informações das pacientes

Além de temas relacionados ao pré-natal, como diabetes gestacional, hipertensão na gravidez, eclâmpsia e infecções sexualmente transmissíveis, a capacitação tem outro importante objetivo: informar os participantes sobre a plataforma Telepnar (Telemonitoramento de Pré-Natal de Alto Risco no Estado do Amazonas) e orientar sobre seu uso no dia a adia. 

“Nós desenvolvemos uma plataforma digital que denominamos de Telepnar. Mediante um treinamento prévio para profissionais de saúde dessas localidades remotas, tanto médico quanto enfermeiros, eles ficam habilitados a inserir, nessa plataforma, os dados das pacientes que se enquadram nesse perfil de gravidez de alto risco. Ou seja, situações como diabetes gestacional, hipertensão na gravidez, eclâmpsia, enfim, fatores que podem agravar a gravidez e ter um desfecho desfavorável, qual seja, internação em situação grave dessa paciente ou até óbito materno-infantil, materno-neonatal”, explica o médico Pedro Elias Souza, chefe da Unidade de E-saúde do HUGV-Ufam/Ebserh.

Pedro Elias também destacou o papel da Rede Ebserh, por meio do HUGV-Ufam, nesse projeto. “O Hospital Universitário Getúlio Vargas, que integra a Rede Ebserh e é da Universidade Federal do Amazonas, tem um papel preponderante no fator saúde nessa região da Amazônia Legal brasileira há muito tempo”, afirma. Conforme o médico, recentemente, o hospital voltou o olhar, de forma definitiva, para a Amazônia que pouca gente vê: a Amazônia do interior, em que o cidadão e a cidadã mal têm acesso à saúde de qualidade. “Então, nessa lógica de que é difícil que essas pessoas consigam chegar até o hospital, o hospital pode chegar até eles tranquilamente, com esse projeto que estamos fazendo aqui hoje por meio da tecnologia”, declara o gestor.

“Só ressaltar, por fim, a importância da rede Ebserh nessa temática tão cara para a saúde pública do País, notadamente no que diz respeito a situações tão relevantes como as que foram abordadas aqui, ou seja, uso de tecnologias para o enfrentamento da mortalidade materno-infantil; necessidade de investimento em tecnologias digitais de informação e comunicação como telemedicina/telessaúde, principalmente para regiões de difícil acesso, como a Amazônia Brasileira; somar esforços para melhorar o acesso à saúde de populações ribeirinhas e povos originários e população indígena e, por fim, trabalho em rede. É a minha opinião”, conclui o médico Pedro Elias Souza, chefe da Unidade de E-saúde do HUGV-Ufam/Ebserh.

SAIBA MAIS – O projeto “Telemonitoramento de Pré-natal de Alto Risco para Regiões Remotas do Amazonas” (do qual a capacitação que está sendo realizada em Tefé faz parte) começou no ano passado. A iniciativa do HUGV é fruto de uma parceria entre a Universidade Federal do Amazonas e o Ministério da Saúde (MS), por meio de um Termo de Execução Descentralizada (TED) assinado em julho de 2022. Além do hospital-escola vinculado à Rede Ebserh e do MS, o projeto conta com a participação de outros atores, como o governo do Estado do Amazonas, por meio da Secretaria de Saúde, a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Manaus e pastas da Saúde de outros municípios.

Conhecimento que ajuda a salvar vidas

Taíssa Seixas é enfermeira na região do DSEI Médio Solimões e Afluentes. Ela ficou encantada não apenas com o treinamento dado, mas também com as possibilidades que a plataforma Telepnar oferece. “A gente vive em uma área de difícil acesso. Contamos com uma população com particularidades bem diferentes das demais vivenciadas no Brasil todo, e saber que vamos ter esse apoio, com a ajuda dessas pessoas que têm mais conhecimento, que têm mais capacidade de nos ajudar, é muito importante”, comenta. “Participar dessa capacitação, e até mesmo saber mais sobre telessaúde, com certeza, vai não apenas me ajudar como também todos os colegas que estão participando”, reforça.

Não é para menos. Taíssa sabe das dificuldades enfrentadas por gestantes de localidades remotas. Atualmente, ela atua em áreas que facilitam o deslocamento das pacientes à cidade. Mas sabe que isso não é regra. “As comunidades em que eu atuo atualmente são próximas à cidade. Então, para mim não se torna tão difícil trabalhar com elas, porque, em caso de qualquer intercorrência, a gente leva ao município. Mas eu já trabalhei em polos mais distantes e, sim, era de difícil acesso”, diz.

Se não bastasse a distância física para se chegar a um posto de saúde ou a um hospital, a cultura também pode ser uma barreira. “Como a população é indígena, principalmente os nativos não têm o conhecimento da importância da realização do pré-natal. Então, existe uma particularidade muito grande nisso de a gente trabalhar essa importância do pré-natal e saber identificar os problemas que isso pode causar. Muitas vezes, elas não seguem as orientações, elas não tomam as medicações e, quando chegam para a gente, chegam assim num estado mais grave”, relata. Para Taíssa Seixas, saber que vai haver profissionais do HUGV-Ufam/Ebserh, lá em Manaus, para auxiliar no acompanhamento do pré-natal dessas gestantes será de grande valia. “Saber que vão ajudar a gente a sanar dúvidas, a melhorar o quadro clínico delas, é muito importante”, complementa a enfermeira.

Coordenadora distrital de saúde indígena do DSEI MRSA, Ercilia da Silva Vieira (Índia Tikuna) – Divulgação.

Treinamento também é espaço para colaborações

A capacitação promovida pelo HUGV-Ufam/Ebserh tem todo um roteiro, e os participantes que estão nos bancos como alunos também têm vez e voz. E se manifestam: fazem perguntas, tiram eventuais dúvidas e contribuem muito, inclusive para o melhor desenvolvimento da plataforma. Nessa troca de saberes, ganham todos: os profissionais de saúde, os especialistas do hospital-escola vinculado à Rede Ebserh e as gestantes que serão atendidas. 

“Aoficina do Telepnar está sendo bastante proveitosa para a gente. Estamos tirando bastante dúvidas. A gente fica muito feliz com essas atividades, porque, com essa qualificação, não só a gente vai ganhar, como quem está lá na ponta, que são os indígenas, que vão ganhar também”, afirma o enfermeiro Wildes José Abrahão Araújo.

Com mais de nove anos de atuação no DSEI Médio Solimões e Afluentes, Wildes José Abrahão aproveita a experiência acumulada com os povos da região para auxiliar os especialistas do HUFV-Ufam/Ebserh quando percebe alguma inconsistência na plataforma. Como exemplo, ele lembrou que há diferenças entre brancos e indígenas em relação à altura, e isso precisa ser levado em consideração. “A gente pontuou essa questão da altura uterina do indígena e do branco. Quando a gente vai comparar, as idades gestacionais vão dar divergentes porque a altura de um indígena não é igual a de um branco”, explica. Segundo Wildes, alguns indígenas da etnia katukina são muito pequenos e têm 1,30 m de altura. “Eles são muito baixinhos, então, até a questão do ganho de peso é diferente. Então a gente tem tentado passar nossa experiência e vai somando com os colegas que estão aqui, desenvolvendo essa atividade com a gente”, complementa.

O enfermeiro Wildes José Abrahão também comentou que a plataforma Telepnar deve dar uma grande contribuição na assistência às indígenas gestantes, principalmente as adolescentes. “O que a gente tem mais dificuldade é a questão da gravidez na adolescência, onde a gente tem inúmeros casos”. Ele comentou que, ao contrário da cultura branca, é comum haver casamento entre os indígenas com pessoas de 12, 13 anos. “Nos indígenas, isso é cultural deles. Então, eles casam muito jovens e engravidam muito cedo. Você sabe que aquele corpo não está preparado para uma gravidez. Então a gente tem que ter todo aquele cuidado. Se, na cidade, já é difícil a questão dos exames, o acompanhamento, agora você imagina lá na aldeia! Então, isso (a plataforma), para a gente vai ser um ganho muito grande”.

SOBRE A EBSERH

O Hospital Universitário Getúlio Vargas integra a Rede Ebserh desde novembro de 2013. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 41 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.


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