A “República de Curitiba” bombardeada pelo exército togado

Por Kátia Magalhães 

Confesso a você, caro leitor, que, ainda em choque diante da decisão talvez mais hedionda de toda a nossa história judiciária, meus dedos teimam em não percorrer o teclado com a desenvoltura habitual. Em vez de executarem algo como a Valsa Brilhante de Chopin, hoje, eles insistem em travar a cada minuto, como se estivessem improvisando um réquiem, bem lento e monotemático, como parte de uma liturgia fúnebre de reverência à extinção de uma vida, ou à perda de um valor intangível essencial à coletividade. Réquiem para nossas liberdades políticas.

Na última terça-feira (16), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou, por unanimidade, o registro da candidatura do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR), e o fez basicamente mediante a alegação de suposta infração à Lei Complementar 64/90, que dispõe sobre as hipóteses de inelegibilidade. No entanto, antes de adentrar o mérito da questão propriamente dita, vale dar uma arejada na memória e relembrar que o relator do caso, ministro Benedito Gonçalves, havia sido, em priscas eras, suspeito de favorecer o empresário Leo Pinheiro, sócio da construtora OAS, e um dos principais alvos da Operação Lava-Jato. Assim, não é demais indagar qual seria a isenção desse togado para relatar e julgar assunto referente a Deltan, logo ele, um dos protagonistas da Operação que suscitara dúvidas em torno da idoneidade de Gonçalves. Da mesma forma como cabe colocar em xeque em que medida os demais magistrados participantes do julgamento de ontem, todos abertamente opositores à Lava-Jato e a seus integrantes, poderiam ser tidos como imparciais para a avaliação de eventuais irregularidades praticadas por Deltan. Por si, tais questionamentos já seriam suficientes para a descaracterização da sessão de ontem como uma ocasião de exercício de jurisdição, e, antes, para delineá-la como um ritual farsesco.

No tocante aos argumentos do relator, acolhidos instantaneamente pelos demais, Gonçalves sustentou que a formulação, por Deltan, de seu pedido de exoneração do Ministério Público onze meses antes da corrida eleitoral, mas na pendência de uma sindicância contra o então procurador, o teria deixado inelegível. Contudo, aí está a chave da falácia do raciocínio do relator – e o diabo mora nos detalhes! –, não havia sido instaurado, contra Deltan, qualquer processo administrativo disciplinar (PAD), cuja propositura, esta sim, o teria privado do direito de concorrer, pois o início de um PAD já teria implicado o reconhecimento de uma fumaça em torno da possível prática de ilícitos graves. Trata-se, aliás, de conclusão decorrente da redação textual da Lei Complementar invocada pelo togado, segundo a qual se tornam inelegíveis membros do MP que tenham “pedido exoneração na pendência de processo administrativo disciplinar”.

Ora, como pôde o togado ter vestido a fantasia de adivinho, a ponto de basear todo o seu raciocínio em um PAD que teria sido “inevitável”, mas que sequer chegou a existir? Qualquer usuário de toga deveria saber que, ao intérprete da lei, cabe o exame de fatos reais, e jamais a elucubração em torno daqueles que “poderiam ter sido”. Onde residiria a necessariedade na transformação de uma sindicância (menos gravosa) em um PAD (mais gravoso)? No universo jurídico, não há que se falar em “inevitabilidade”, muito menos no que diga respeito a juízos de valor apriorísticos em procedimentos, e muito menos ainda em procedimentos administrativos, cuja tramitação precede o ingresso na esfera judiciária.

Como alegar “fraude à lei”, chegando a invocar o inigualável Pontes de Miranda – que o togado do português capenga certamente jamais folheou! -, se não há, nos autos, qualquer prova concreta de que Deltan tenha burlado vedações com o simples intuito de vencer uma eleição? Um gigantesco universo de cogitações, em paralelo ao mundo dos autos, que é o que tem de nortear qualquer magistrado.

O dito julgamento se torna ainda mais escandaloso se pensarmos que a controvérsia gira em torno do direito fundamental e constitucional de ser eleito, razão pela qual os casos de inelegibilidade têm de ser avaliados de modo restritivo, ou seja, em consonância estrita com os termos da lei. Portanto, se a legislação aplicável se refere à existência de PAD instaurado e se, no caso específico, sequer houve PAD, não há impedimento à candidatura apreciada. Esse, aliás, já havia sido o entendimento unânime do TRE/PR, que havia declarado Deltan plenamente elegível, e possibilitado que milhares de paranaenses optassem pelo ex-procurador.

Já em relação ao processo promovido contra Deltan junto ao TCU, alegação acessória trazida por Gonçalves, é fato notório que o assunto ainda se acha pendente de recurso, não tendo figurado, assim, como elemento impeditivo à sua candidatura, pois a inelegibilidade só pode decorrer de decisão definitiva (transitada em julgado).

Sem mais tedioso juridiquês, e resumindo todo esse imbróglio tão tragicamente nacional, nota-se que a corte local, a partir da apreciação fiel das provas, havia constituído uma determinada situação jurídica, a saber, o reconhecimento da elegibilidade de Deltan. Uma vez escolhido por seus eleitores, e empossado como parlamentar, o ex-procurador, ainda que punido pela justiça eleitoral, só poderia ser efetivamente cassado por deliberação da mesa da Câmara dos Deputados, por força de dispositivo expresso da nossa Constituição.

Contudo, como não mais vivemos sob a égide de uma ordem constitucional, mas sob os ditames imprevisíveis da recém-implantada república alexandrina, o presidente do TSE, nosso todo-poderoso censor, definiu ontem, ao proclamar o resultado da sessão, que o julgado produziria efeitos imediatos. Desse modo, não só as escolhas dos 344 mil eleitores em favor do deputado mais votado em seu Estado foram jogadas ao lixo, como papel velho e imprestável, como também o próprio congresso voltou a ser humilhado e subjugado pelo poder vizinho.

Contrariamente aos demais animais, nós, humanos, vivenciamos duas esferas bem distintas de existência: aquela do nosso âmbito privado, centrado em torno da nossa casa, família e relações de afeto, e a de nossa vida pública, na qual atuamos como “animais políticos”, interagindo com nossos iguais na pólis tanto por nossas ações quanto por nosso discurso. Nos modernos sistemas representativos, nossa atividade política só pode ser exercida mediante o escrutínio de muitos (eleitores) em prol de alguns (eleitos), razão pela qual as sociedades com as quais lidamos mais amiúde, incluindo a nossa, pactuaram, como regra, a mais ampla liberdade de votar e ser votado, e, em casos excepcionais definidos com precisão na lei aplicável, algumas barreiras ao exercício dos direitos políticos.

No Brasil da censura togada e do arbítrio escancarado por parte de quem não conhece mais freios aos seus desejos e caprichos, a cada dia, nossos ungidos nos impõem a privação de mais uma liberdade. Ontem, testemunhamos o adeus à livre escolha nas urnas, rota certeira para a eliminação da oposição ao grupo político assentado em cargos de mando, e para a pasteurização dos rostos no parlamento, todos mais ou menos desenhados para assentirem a qualquer excrescência. Amanhã, qual será a próxima liberdade tolhida, ou até eliminada de vez?

Katia Magalhães é colunista do Instituto Liberal, advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.


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