Um oceano de diversidade: Navegando pela inclusão e equidade na década do oceano

A ciência oceânica está predominantemente concentrada nos países desenvolvidos, com a grande maioria dos centros de pesquisa localizada na Europa e na América do Norte.

Esse desequilíbrio geográfico perpetua uma lacuna de conhecimento global, onde as vozes e o conhecimento daqueles que vivem em nações costeiras em desenvolvimento – muitas vezes as mais afetadas pelos impactos oceânicos – são marginalizados

Por Malu Nunes e Julian Barbière

Se o mar é constantemente usado nas artes como metáfora para descrever os complexos sentimentos humanos, o oceano pode ser visto como um símbolo de diversidade e inclusão. Esse gigante abriga a maior biodiversidade do planeta, é responsável pela regulação do clima, acolhe culturas tradicionais ao longo das suas costas e sustenta atividades econômicas vitais. Conecta continentes, atuando como um elo natural que une as nações.

Contudo, a situação dos vastos e intrincados ecossistemas do oceano está mais crítica que nunca para a saúde do nosso planeta e para o nosso futuro. Face aos crescentes desafios ambientais, a ciência que procura compreender e proteger os ambientes marinhos e as comunidades que deles dependem tem sido historicamente moldada por um estreito leque de vozes.

A Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2021-2030 (Década do Oceano), liderada pela Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO (UNESCO-COI), tem o ambicioso objetivo de “catalisar soluções transformadoras da ciência oceânica para o desenvolvimento sustentável”. Tendo em vista “a ciência que precisamos para o oceano que queremos” e uma ampla definição de ciência oceânica, abrangendo diferentes formas de conhecimento sobre o oceano e embasada por princípios de inclusão, equidade e diversidade, a Década do Oceano convoca diversos atores para cocriar e codistribuir a ciência e o conhecimento necessários para tomadas de decisão.

Oceano em alerta

A pesquisa no ambiente marinho enfrenta obstáculos consideráveis. Disparidades históricas e crescentes no acesso a recursos financeiros e infraestrutura científica limitam a capacidade de muitos países em participar plenamente da ciência oceânica. A escassez de financiamento, a falta de embarcações e equipamentos adequados e a dificuldade de acesso a áreas remotas são barreiras significativas. Além disso, a distância, em vários sentidos, entre partes interessadas e cientistas, pode resultar lacunas de conhecimento e dificuldades na tradução e aplicação da ciência em ações públicas eficazes. Superar esses entraves é crucial para o sucesso da Década, garantindo que a produção científica e sua aplicação sejam inclusivas, representativas e capazes de gerar soluções eficazes para os desafios enfrentados pelo oceano.

Relatório Global da Ciência Oceânica 2020 da UNESCO-COI revela disparidades gritantes na produção da ciência oceânica. De acordo com a publicação, as mulheres têm participação inferior a 40% nos trabalhos científicos globais sobre oceano, número que cai significativamente em cargos de liderança. Além disso, a ciência oceânica está predominantemente concentrada nos países desenvolvidos, com a grande maioria dos centros de pesquisa localizada na Europa e na América do Norte. Esse desequilíbrio geográfico perpetua uma lacuna de conhecimento global, onde as vozes e o conhecimento daqueles que vivem em nações costeiras em desenvolvimento – muitas vezes as mais afetadas pelos impactos oceânicos – são marginalizados.

O emblemático Relatório sobre o Estado do Oceano 2024 destaca ainda mais essas desigualdades, trazendo que comunidades indígenas e locais, apesar do seu conhecimento profundo e tradicional sobre os ecossistemas marinhos, seguem sub-representadas diante da ciência oceânica. Essa exclusão não só prejudica a inovação científica, mas também enfraquece nossa capacidade coletiva de responder aos desafios relacionados ao oceano com estratégias culturalmente sensíveis e eficazes.

Segundo as pesquisadoras brasileiras Jana Menegassi del Favero e Mariana Martins de Andrade, em artigo na revista “Ciência e Cultura”, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), para transformar essa realidade é preciso adotar uma abordagem que priorize a equidade, implementando uma governança inclusiva e um planejamento de longo prazo que considere a justiça geracional.

Promover maior participação das mulheres é um exemplo do que podemos fazer para garantir a diversidade e a inclusão na cultura oceânica. Quando tratamos de algumas das principais atividades econômicas no mar – geração de energia, exploração mineral, pesca e aquicultura, construção e reparação naval –, vemos novamente ambientes majoritariamente masculinos. No que diz respeito à pesca, embora a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estime que 79% dos pescadores no mundo sejam homens, no Brasil, levantamento recente do Governo Federal mostrou que 49% são mulheres. Em cinco estados, elas são maioria (Maranhão, Pernambuco, Sergipe, Bahia e Alagoas).

Esse contingente feminino está predominantemente presente na pesca artesanal, que valoriza as comunidades locais e suas pequenas famílias, garantindo segurança econômica e alimentar e perpetuando a cultura tradicional. Vale destacar que, na costa brasileira, que se estende por 8.500 quilômetros, há uma rica diversidade de comunidades pesqueiras tradicionais, incluindo indígenas, quilombolas, marisqueiros e catadores de caranguejo.

Passos concretos para a inclusão, diversidade e equidade na ciência oceânica

O sucesso da Década dos Oceanos não será medido apenas pelos avanços científicos, mas pela amplitude e diversidade das vozes que contribuem para essas iniciativas e influenciam políticas públicas. Se quisermos alcançar um oceano mais saudável e resiliente até 2030 e, mais além, sem deixar ninguém para trás, temos de continuar identificando e removendo sistematicamente barreiras à diversidade geracional, geográfica, de gênero e de conhecimento. Esses princípios da Década do Oceano estão alinhados com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável; de fato, não somente com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável “Proteger a Vida Marinha” (ODS 14), que trata diretamente da agenda oceânica, mas também com outros, como a “Igualdade de Gênero” (ODS 5), “Reduzir as Desigualdades” (ODS 10), “Cidades e Comunidades Sustentáveis” (ODS 11) e “Ação Climática” (ODS 13).

Embora tenham sido feitos bons progressos desde o lançamento da Década, em 2021, são necessários esforços adicionais. Todas as partes interessadas – cientistas, tomadores de decisão, comunidades costeiras, indústria, setor privado e sociedade civil – devem estar ativamente envolvidas na definição e implementação de soluções.

Nesse espírito de colaboração, representantes de cerca de 30 fundações globais reuniram-se no Rio de Janeiro, em setembro, sob as premissas da Década do Oceano, para definir ações práticas para potencializar recursos a favor da saúde oceânica, tapando lacunas de financiamento, apoiando vozes sub-representados e promovendo soluções equitativas para a conservação do oceano.

Garantir que todas as vozes sejam ouvidas e valorizadas é essencial para a elaboração de estratégias sustentáveis ​​e inovadoras que possam enfrentar os desafios multifacetados que o nosso oceano enfrenta e salvaguardar os ecossistemas marinhos e costeiros para as gerações futuras. Somente adotando uma abordagem verdadeiramente inclusiva poderemos aproveitar a experiência coletiva e o compromisso necessários para criar um oceano próspero e resiliente que beneficie a todos.

Malu Nunes é diretora-executiva da Fundação Grupo Boticário e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN)

Julian Barbière é coordenador global da Década do Oceano e chefe da seção de Política Marinha e Coordenação Regional da UNESCO-COI.


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