Destrinchando o cotidiano: em obra de estreia, paulistana Ana Helena Reis mergulha em relações afetivas, dilemas sociais e conflitos interiores

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Em “Conto ou não conto”, publicado pela editora Paraquedas, a autora convida o leitor a refletir sobre temáticas como medo, indignação, preconceito, amor, envelhecimento e desigualdades

“A imagem da garrafa de vinho em cima da

mesa dele não desgrudava dos olhos da

dançarina. O bilhetinho seria inevitável, mas

hoje ela ansiava por esse momento. Era sua

 oportunidade. Tentou evitar o encontro com

seus olhos, com medo de que eles a traíssem.”

Trecho do conto “Saiote de Tule” (pág. 90)

Após participar de antologias com outros escritores ao longo de sua carreira, a pesquisadora e escritora paulistana Ana Helena Reis lança o primeiro livro solo, chamado “Conto ou não conto?” (Editora Paraquedas, 124 págs.). A obra pauta a observação do cotidiano ao longo de 34 contos que mergulham em reflexões acerca de relações afetivas, dilemas sociais e conflitos interiores. Adotando hibridez nos formatos e temas ao longo da obra, a autora intercala assuntos leves, por vezes nostálgicos, com outros mais profundos e densos, buscando equilíbrio e fluidez na obra, que perpassa assuntos como o medo, a indignação, o preconceito, o amor, o envelhecimento, a intolerância e as desigualdades.

O livro é uma coletânea de contos variados, que tem como fio condutor o olhar da autora para situações cotidianas que podem despertar memórias afetivas e reflexões. “De uma forma às vezes irônica e divertida, outras vezes dramática ou surpreendente, minha ideia é despertar o leitor para os conflitos interiores que enfrentamos”, explica. “Escolhi esses temas porque creio que eles fazem parte dos nossos questionamentos, nossos sentimentos muitas vezes inconfessos.”

A escrita de Ana Helena tem como principal característica a fluidez do texto.  A autora busca uma linguagem pouco rebuscada, “com um toque de ironia que imprime leveza ao texto, mesmo quando o tema é, por si só, mais dramático”. “Gosto de narrativas que deixam em suspenso a resolução da trama, que às vezes se revela ao final, às vezes fica subentendida, para a interpretação do leitor”, evidencia.

A abertura da coletânea com o conto “Medo da Chuva” (pág. 12 e 13) faz com que o leitor entre em contato com o lado mais inocente de sua criança interior, e seja surpreendido ao se deparar com os contos seguintes. Em uma conversa entre mãe e filha, a garotinha tenta convencer a mãe a deixá-la brincar na chuva, com argumentos em uma linguagem que transparece a essência sonhadora infantil, transportando o leitor para uma época da vida mais inocente e nostálgica.

 Ao adentrar, porém, no segundo conto, “Casamento de risco” (pág. 13 a 17), a atmosfera é modificada. Logo de início a personagem principal, Olívia, encontra-se em uma sessão de terapia tentando descobrir o que aconteceu com sua mãe no passado e o porquê de não conseguir se entregar por completo ao marido. Ao longo da narrativa, vão sendo apresentados  dilemas e flashes de memórias da paciente criando, assim, um quebra-cabeças que prende o leitor até sua resolução.

Nas páginas seguintes, o leitor passa a se deparar com contos em diferentes vozes narrativas. “Maria, que merece viver e amar…” (pág. 38 a 41), escrito em formato epistolar, reflete sobre a violência contra a mulher.  Já no conto que nomeia o livro, “Conto ou não conto?” (pág. 42 e 43), a escritora adota um fluxo de consciência para evidenciar o dilema da narradora sobre a decisão de dar ou não uma importante notícia que poderá abalar sua família. Destaca-se ainda o conto “Arrimo de Família” (pág. 44 e 45), escrito em versos rimados, narrado a partir da perspectiva de um cão de rua.

Escrever literatura: um ofício inesperado

Pesquisadora do comportamento humano. Investigadora de si mesma. Escritora do cotidiano. Ilustradora de devaneios. É como se define Ana Helena Reis, que, aos 73 anos, conta com uma carreira profissional consagrada: formada em administração de empresas pela EAESP/FGV e mestre pela FEA/USP, é empresária, já publicou diversos livros acadêmicos, papers e trabalhos de pesquisa. Também conta com uma extensa vida acadêmica, tendo sido professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) na Faculdade de Economia e Administração durante 15 anos.

Sua área de especialidade em pesquisa é comportamento do consumidor – a observação, investigação e análise do comportamento das pessoas sempre foi um fascínio. “O próprio objeto do meu trabalho me proporcionou a oportunidade de desenvolver a escrita criativa – que inicialmente era um hobby e foi se tornando cada vez mais uma atividade paralela”, conta. “A pandemia foi providencial para que eu migrasse totalmente da escrita profissional para a literária, desde então minha atividade principal.”

Embora escreva desde sempre, vide seus “diários infindáveis” da adolescência, começou a dedicar-se com mais afinco à literatura em 2019, quando passou a publicar contos, crônicas e resenhas no blog Pincel de Crônica. Foi esse blog, cujo nome faz referência à pintura, sua outra paixão, que deu substância para a criação do livro, também influenciado por autores que consome: cronistas e contistas como Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector e Luís Fernando Veríssimo; e, de forma mais ampla, Saramago e García Marquez.

“A escrita de contos está sendo muito transformadora para mim. Criar personagens e situações de ficção é como uma catarse de tudo o que foi sendo acumulado nas minhas lembranças afetivas, porque o escritor, mesmo quando trabalha com a ficção, está colocando uma parte de si naquele texto. Isso acredito que é muito libertador e fez fluir muitos guardados da minha caixa de pandora.”


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