O tempo e seus espantos: poeta Mário L. Cardinale lança “Tempo Diabo”

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Pandemia da Covid-19 e ascensão da extrema direita se aliam à crise da meia idade, à depressão e militância política em segundo livro de tetralogia poética do autor paulista

‘O diabo matou

o tempo e agora

ele anda pra trás.’’

Trecho do poema “Tempo Diabo”

Os últimos anos trouxeram afobamentos, tensões e provocaram certo distanciamento da vida real em boa parte dos brasileiros. Neste período, Mário L. Cardinale, poeta poaense da Região Metropolitana de São Paulo, sentiu a necessidade de dar vida à Tempo Diabo” (Editora Pedregulho, 80 pág.). Como o título sugere, o tempo é o elemento chave na obra, uma coletânea de 40 textos escritos entre outubro de 2018 e dezembro de 2021. Em suas palavras, estão pensamentos e temas pertinentes ao momento do Brasil, suas cicatrizes e tensões, e também as divagações do autor sobre sua condição e prerrogativa em meio à crise. 

Tempo Diabo” é o segundo livro de uma tetralogia poética. Os poemas nasceram diante do espanto do poeta ao acompanhar o cotidiano pós-golpe de 2016 no Brasil. A prisão arbitrária do presidente Lula, a chegada da extrema direita ao poder e a pandemia global do coronavírus são o pano de fundo do livro. Os temas se aliam ao contexto pessoal do escritor: à crise da meia idade, à depressão e militância política nas ruas, nas redes e nos versos. Ao “Tempo Diabo” não faltaram chacinas policiais, massacres em escolas, a nova guerra fria, eleições, corrupção e alienação da massa. 

Os assuntos perpassam uma única centralidade: a vida e o tempo e a relação deles com os espantos vividos pelo poeta. “Escrevo sobre o cotidiano e tudo o que me desperta interesse. Nada é tão ruim e bom quanto o tempo. Havia uma preocupação de registrar o que estava acontecendo ao meu redor nesse período em que o tempo parecia mais lento e ao mesmo tempo mais escasso, na iminência de se esgotar.”

Entre um turbilhão político e um diagnóstico de autismo, um marco poético

Formado em Farmácia pela Universidade de Mogi das Cruzes, Mário L. Cardinale graduou-se farmacêutico industrial em 2003. Além da literatura, ama música, e toca guitarra, violão e teclado — é fã dos Rolling Stones, de Vivaldi, de Gil e de Caetano. O gosto pela escrita acendeu em 2016. Ano histórico para o país, mas também um divisor em sua vida. De lá pra cá, tornou-se pai pela segunda vez e passou a se engajar na militância política. ‘‘Foram muitos anos até retomar esse hábito e me permitir criar. Fiz um curso de escrita criativa em 2016 que foi fundamental para eu acreditar que eu poderia escrever”, aponta. No final de 2020, publicou seu primeiro livro, “O Mundo do Poeta”. No início de 2023 descobriu ser autista. Atualmente, cursa Psicologia com interesse principalmente nas áreas do Comportamento e da Psicologia Social.

As influências literárias de Mário são poéticas e políticas. Ele cita grandes nomes da poesia em língua portuguesa, como Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Mário Quintana, Manoel de Barros, Augusto dos Anjos, Chacal, Arnaldo Antunes e Ana Cristina Cesar. E também dialoga com José Saramago, Aluísio de Azevedo, Lima Barreto, Eça de Queirós, Darcy Ribeiro, Eduardo Galeano, Victor Hugo, Karl Marx, Rosa Luxemburgo, George Orwell e Aldous Huxley.

Diante de todas essas referências, o autor conserva estilo próprio, que ele categoriza como “experimental”. De palavras cruas, invoca em caráter documental o estado policialesco e a arquitetura da destruição que ganharam forma no Brasil. Mas também conversa sobre poesia e a possibilidade de uma vida mais simples e, de certo modo, otimista em um espaço bucólico. “A ideia era fazer um livro que fosse um marco poético no desenrolar do tempo histórico do Brasil e do mundo a partir do pós-golpe 2016, o turbilhão político e a violência que se instalaram no país e a pandemia global que influenciaram diretamente na minha rotina.”

Algumas linhas têm pulsante valor documental. Como a homenagem prestada à Benedita da Silva, quando às vésperas do Natal em 2018 foi às lágrimas ao comentar seu desejo de cear com o presidente Lula — naquele momento, preso em Curitiba (PR). Outras, invadem a intimidade do poeta. Mário é casado há 18 anos com a escritora Monique Bonomini a quem atribui incentivo a sua escrita e valiosas contribuições aos projetos editoriais de seus livros. Em uma peça, o autor ainda presta dedicatória à filha Alice.

“Tempo Diabo” foi escrito em constante trânsito entre as cidades de Poá e São Bento do Sapucaí. Essa última, uma cidade de pouco mais de 11 mil habitantes na Serra da Mantiqueira, serviu como refúgio para Mário, que encontrou ali o ritmo de vida adequado para escrever sobre o que lhe despertava interesse à sua volta. O livro é dividido em quatro capítulos que, mesmo a priori, podem parecer distintos, mas fluem naturalmente – como o tempo. Tempo, a entidade com quem todo indivíduo desenvolve uma relação e tira suas próprias percepções.

Confira um trecho do poema “Espólio da Nação”, que compõe “Tempo Diabo”:

‘‘A pedra fundamental

de um país cruento

esculpida à matança,

sofrimento.

Afro-cativo, escravização:

espólio maldito da nação.’’


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