R$ 82 bilhões é que estados e municípios poderão perder caso o Congresso não aprovar retorno do voto de qualidade no Carf
Véspera da votação do PL 2384/23 acende alerta sobre impactos nas contas e políticas públicas com cancelamento de débitos tributários de grandes empresas. Tabela mostra perdas por estado e município caso projeto do governo seja rejeitado
Mais de R$ 82 bilhões é o impacto direto no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e Fundo de Participação dos Municípios (FPM) caso o Congresso Nacional rejeite o Projeto de Lei 2384/23 que restaura o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).
Na véspera da votação, especialistas reforçam a importância de aprovar a medida de desempate sob pena de municípios, estados e políticas públicas perderem bilhões em favor de devedores de tributos. O Instituto Justiça Fiscal publicou nesta semana uma nota técnica e a lista com impactos em cada um dos estados e municípios (link).
“Essa redução impactará profundamente as cidades brasileiras, principalmente os pequenos municípios e as pessoas que neles vivem. Com base nos coeficientes de distribuição do FPE e FPM, publicados pelo Tribunal de Contas da União, projetamos as perdas por estado e município”, pontua o auditor fiscal Ricardo Fagundes, especialista em estudos sobre o contencioso tributário. É de R$ 1,3 trilhão o estoque atual do contencioso administrativo federal; R$ 252 bilhões é o montante a ser cancelado sem o voto de desempate.
“Conclamamos a todas e todos a lutarem pelo restabelecimento do Voto de Qualidade”, registra o documento do IJF, distribuído aos parlamentares e entidades de todo o país.
Favorecimento a grandes devedores e aberração mundial
O voto foi retirado pelo governo de Jair Bolsonaro em 2020, sem debate com a sociedade, após vigorar por 48 anos, causando grandes impactos na arrecadação fiscal e combate à sonegação, permitindo o cancelamento de bilhões de reais em autuações de grandes empresas, isentando importantes devedores de impostos.
O instrumento é uma espécie de “voto de minerva” no julgamento de causas tributárias. Em caso de empate, o presidente do colegiado, representante da Receita Federal, desempata o julgamento. Se for desfavorável aos autuados, estes sempre podem recorrer ao Judiciário. Com empate, sem voto de qualidade, a União perde e não pode recorrer judicialmente.
O CARF é um órgão do Ministério da Fazenda que julga, em segunda e terceira instâncias, os recursos das empresas e pessoas físicas contra as autuações realizadas pela Receita Federal do Brasil no combate à sonegação fiscal. Embora seja um órgão da administração pública, do total dos julgadores do CARF, metade são funcionários da Receita Federal e a outra metade são indicados por confederações empresariais (CNI, CNC, CNF, CNT, CNA e CNS), anomalia exclusivamente brasileira.
OCDE se posiciona pelo voto de qualidade
A aprovação do Projeto de Lei do Governo Federal é tão decisiva para restaurar a justiça fiscal nesse âmbito que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE se manifestou sobre a necessidade de recuperação do Voto de Qualidade para a Administração Fiscal do Brasil por considerar essa mudança abrupta e incomum.
No comunicado feito em abril, o órgão salientou que a prática brasileira não encontra precedentes em outras jurisdições ao redor do mundo, principalmente no que diz respeito ao grau de participação dos entes privados nas decisões.
“O fim do voto de qualidade no CARF traz perdas significativas na composição do erário público e, consequentemente, na realização de políticas públicas, prejudicando toda a sociedade brasileira. Por meio desta Nota Técnica refletimos explicitamente o reflexo direto nos municípios e estados”, completa o documento.
Anomalias favorecem grandes devedores
O Brasil é o único país entre os países da OCDE a oferecer três instâncias administrativas para recursos, levando a uma média de nove anos para o julgamento, podendo chegar a quase 20 anos se houver recursos aos judiciário, enquanto em 80% dos países da OCDE o prazo é de um ano.
Análise sobre recursos em 2017, demonstra que após o final do processo os devedores pagaram apenas 3,74% dos valores julgados favoráveis à fazenda pública. “Está provado que a captura do Carf pelas grandes corporações empresariais prejudica profunda e estruturalmente o país”, enfatizou o pesquisador que comprovou a anomalia em seu estudo.
Nas decisões favoráveis à Fazenda, realizadas na Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF – 3ª instância) com valores superiores a R$ 300 milhões, 50% foram tomadas com o voto de qualidade. Quando o valor é superior a R$ 1 bilhão, esse percentual alcançou 75%, o que revela que quanto maior o valor das autuações maior a tendência de os conselheiros indicados pelas confederações votarem a favor dos autuados.
Em janeiro de 2023, o atual governo publicou uma Medida Provisória (1160/23) para restabelecer esse mecanismo. Como a citada MP sequer foi analisada pelo Congresso Nacional, o governo enviou ao parlamento o PL 2384/23, que tramita em regime de urgência.