Hipóteses e questionamentos sobre a possível hegemonia global do yuan em meio ao embate entre EUA e China

Há um longo caminho a ser percorrido caso o yuan realmente venha a substituir o dólar como moeda hegemônica no cenário internacional. A raiz da transformação está no avanço geopolítico que a China precisa construir no mundo, e não apenas no volume de transações com a moeda chinesa. É o que apontam os especialistas ouvidos por A Referência, em meio à aposta de investidores de que isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.

Beijing já deu os primeiros passos neste percurso. Ainda em 2015, o FMI (Fundo Monetário Internacional) concedeu ao yuan – ou renminbi – o status de moeda de reserva. Menos de um ano depois, adicionou a cifra chinesa à cesta de Direitos de Saque Especiais. No grupo seleto estão dólar, euro, iene japonês e libra esterlina.

Em seguida, Beijing atrelou o yuan ao dólar dos EUA por meio de um “par administrado”. Em uma âncora flutuante com tendência de queda desde 2015, a moeda tornou as exportações chinesas mais competitivas em relação ao preço do dólar em todo o mundo.

As exportações de baixo custo aos EUA fizeram com que a participação da China no comércio internacional disparasse, o que alavancou o PIB (Produto Interno Bruto) chinês para um aumento de até 10%. A medida, que marca o início dos atritos entre Beijing e Washington, também inaugurou a popularidade do yuan.

Então em 12º lugar, a moeda tornou-se a quarta mais usada no mundo enquanto bancos centrais passaram a separar um lugar para a moeda chinesa em suas reservas. Enquanto isso, o comércio de dólares americanos caiu, como apontou o site norte-americano The Balance, em maio.

O ligeiro aquecimento fez com que investidores bilionários, como Ray Dalio, anunciassem o yuan chinês como a próxima moeda de reserva global. “Acontecerá mais cedo do que esperamos”, disse ele à emissora norte-americana CNBC.

Entre a previsão e a especulação, economistas preferem uma análise de curto e médio prazo. E o consumo inexpressivo do yuan no mercado global colabora para dar o tom cético à narrativa de hegemonia da moeda chinesa.

O que faz a hegemonia

Um conflito bélico de alcance global, a economia da Europa em colapso e um importante arsenal em venda: eis a receita do que alavancou os EUA e, em consequência, o dólar, para a hegemonia após o fim da Segunda Guerra Mundial.

A ascensão norte-americana não começou somente pela economia, mas por um projeto que, ao instaurar o american dream, alavancou os EUA, seus costumes e sua filosofia social ao status de referência global. Não foi o nível de comércio que beneficiou Washington ante seus parceiros mundiais, mas a confiança na economia norte-americana.

O que conta, nesse caso, é a estabilidade da política monetária concebida através das instituições do país. A forte dependência do yuan para com o Partido Comunista Chinês tende a prejudicar a confiança na moeda caso se torne mais internacionalizada, disse André Perfeito, economista-chefe da corretora de valores Necton.

Os presidentes da China, Xi Jinping, e dos EUA, Donald Trump, em encontro em Beijing em 2017 (Foto: Divulgação/Casa Branca)

Assim, a construção hegemônica de uma moeda está mais ligada a esse processo – de Hollywood à força militar – que à dominação do comércio global, “Para haver hegemonia, é essencial que as transações, os contratos e todas as negociações a nível global sejam denominadas naquela moeda. Ainda não vemos esse salto”, apontou.

Outro indício sobre o longo caminho até a hegemonia do yuan é a crescente reserva cambial da China em dólar. Beijing possui mais de US$ 3,2 trilhões em reserva – a maior cifra desde abril de 2016, conforme dados do Banco do Povo da China acessados pela Reuters.

A interdependência é inegável, assim como os obstáculos que a China ainda tem pela frente até alcançar a hegemonia monetária. O principal é o aspecto geopolítico, destacou o professor de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getúlio Vargas), Pedro Brites.

“Há muita resistência em relação ao crescimento chinês, não apenas nos EUA”, apontou. “É difícil, então, que a China resista sozinha. Mas é claro que isso não significa que ela não tenha intenção de aumentar a participação – mas talvez só como uma tentativa de reduzir sua dependência”.

O que a China quer?

As narrativas da China não explicitam seu interesse na hegemonia global – ou, pelo menos, não é essa a terminologia usada pelo chineses, apontou o secretário-geral do Centro de Estudos Globais da UnB (Universidade de Brasília) e diretor de pesquisa da rede Observa China Paulo Menechelli.

Em seus estudos, o pesquisador percebe que as narrativas chinesas não pregam o predomínio global – diferente dos discursos de liderança impulsionados pelos EUA. Ver os dois países sob a mesma ótica é, inclusive, equivocado.

“Mesmo que a China se torne a maior economia do mundo em valores, ela não sinaliza o interesse de impor sua cultura a outros países. Ela não fala que quer ser uma superpotência global”, sinalizou Menechelli. Essa é a mesma conclusão do livro recém-lançado pelo norte-americano Ryan Hass, “Stronger” (sem versão em português).

Na obra, Hass conclui que a China mantém uma “interdependência competitiva” e não fomenta a inimizade, como dizia Donald Trump. “Mesmo que a China supere os EUA e se torne a maior economia, essa interdependência deve continuar existindo. A China quer conquistar o que considera sua posição legítima, ou seja, ser uma potência central na Ásia e uma grande potência global”, aponta o autor.

Os inúmeros desafios internos do país asiático vão ao encontro dessa narrativa. Apesar de ser uma economia pujante, a China reconhece suas mazelas. “A China ainda se apresenta como sul global ao reforçar que tem como marca a superação da pobreza extrema e muitas questões de países em desenvolvimento”, disse Menechelli.

Casal de mendigos chineses na cidade chinesa de Guangzhou, outubro de 2006 (Foto: Divulgação/Taro Taylor)

Estrada tortuosa

Antes de alcançar o posto de moeda global, o yuan deve ser bem-sucedido como um moeda de reserva. Assim, seria usado para precificar mais contratos internacionais, o que garantiria a Beijing certa liberdade em relação ao valor do dólar.

Enquanto isso, exportadores chineses teriam custos de empréstimos mais baixos, e a China alcançaria um peso econômico maior em relação aos EUA, movimento que poderia forçar Washington a apoiar algumas das reformas econômicas de Xi Jinping.

Para isso, os líderes chineses já começam a facilitar a negociação do yuan nos mercados de câmbio estrangeiros. O ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg está criando um centro de comércio de renminbi nos EUA. O grupo, que inclui ex-secretários do Tesouro, como Hank Paulson e Tim Geithner, quer reduzir os custos para empresas norte-americanas negociarem com a China.

Mas o domínio da moeda nas transações globais ainda tem muito a percorrer. Conforme a rede de serviços financeiros Swift, o renminbi é usado em menos de 3% dos pagamentos internacionais em 2021, enquanto a participação do dólar chega a 50%.

“Pode ser que aconteça em 100 anos, mas no curto e médio prazo é difícil de conceber essa ideia”, pontuou Simone Pasianotto, economista-chefe da Reag Investimentos. Assim como a corretora de Perfeito, nenhuma das financeiras realiza transações em yuan. Até o momento.

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