Por Paula Mairan 

Logo após receber a notícia de que Renatinho estava internado e intubado, comecei a passar mal da Covid 19. Achei até que poderia ser algo psicológico. Havia estado com ele cinco dias antes, dia 27/3.

Tudo começou no 3/3 com dores e espasmos violentos no abdômen, que me faziam sentir fraqueza, fazer caretas, suar frio, tremer e ter vontade de chorar.

Mais tarde tive um forte desarranjo intestinal e a primeira febre de que me lembro de ter tido desde a infância.

Na mesma noite, iniciei uma dor de cabeça insuportável, ao ponto de provocar ânsias de vômito.

Um médico amigo me acalmou e orientou neste primeiro momento. No terceiro dia, 5/3, como não melhorei, fui à emergência pela primeira vez, na Casa de Saúde Nossa Senhora Auxiliadora. Fiquei três horas esperando a consulta. Admitiram ter se esquecido de mim solitária na sala de espera. Fiz exame de sangue, mas voltei pra casa da consulta sem diagnóstico, com paliativos (a dipirona e a bromoprida que já tava tomando) e uma guia pro teste do cotonete, que deu negativo.

Cinco dias depois, na manhã do 10/3, já muito fraca, uma semana sem conseguir me alimentar e em desidratação, corri pro Hospital Santa Martha, onde finalmente me senti desde o primeiro momento acolhida, cuidada.

Ainda na emergência fui encaminhada pra exame de sangue e tomografias dos pulmões e da cabeça. A tomografia confirmou que 25% dos pulmões estavam tomados pela infecção da Covid. Fui internada.

Cheguei a vomitar no quarto, mas pela última vez. Com Tramal pra dor de cabeça, medicamento pra enjoo, pro intestino, soro de reposição de potássio, e os antibióticos, cortisona, xaropes e talvez algo mais, recuperei aos poucos a vontade de viver.

Cheguei ao hospital emocionalmente debilitada, confusa, preocupada, a cabeça tumultuada com as demandas de dinheiro, de tarefas pendentes e acumuladas do trabalho, da militância política, da casa, da filha, do gato, das plantas, da família. Havia uma sensação geral de insuportável estresse, cansaço, impotência, derrota, medo da própria vida.

Em três dias, consegui sair desse caos mental. Até então não queria nada além de ficar quietinha, no escuro, sob o cobertor. Não tinha nem apetite ainda e não podia e não queria ter que decidir ou resolver nada.

Qualquer luz ou ruído me desestabilizava. O ir e vir das enfermeiras a administrar banho, alimentação, medicamentos orais e na veia, a medir pressão, temperatura e oximetria, as consultas diárias, tudo isso já era muita movimentação, o tempo voando sem eu levantar do leito do hospital. Precisava me entregar completamente ao cuidado dos profissionais de saúde.

Mas com a cabeça e o estômago acalmados, passei aos poucos a poder refletir sobre tudo com mais serenidade. O quarto se tornou o meu casulo de crisálida. Veio então um segundo momento de aceitação e entrega, de quase desejo de fazer a passagem pra uma outra forma de existência, uma certa repulsa ao mundo, à vida como ela vinha sendo, uma vontade profunda de transformação.

Pensei que se fosse embora iria deixar pra trás pessoas amadas, meu gato e as minhas plantas, alguns sonhos de livros, estudos, viagens e revoluções, mas que nada poderia ser mais importante do que a oportunidade de uma outra vida. Fechava os olhos e visualizava no teto a luz branca ou o buraco negro que me abduziriam deste mundo. Vi que a tristeza pode mesmo matar. Mas hoje vejo que tava movida também por um certo egoísmo e uma baita covardia.

O cuidado carinhoso dos profissionais de saúde fez diferença na disposição pra me reconectar com a vida real. Como em certa manhã em que a enfermeira Cássia abriu a janela e deixou entrar o ar da rua e a luz do sol.

Foi impressionante o efeito da simples novidade de rever o céu azul. A ternura cura. Desenvolvi gratidão profunda a cada pessoa envolvida direta ou indiretamente nesses cuidados. Desde quem pesquisou e produziu os medicamentos e alimentos, até quem os entregou a mim. Deu vontade de retribuir essas pessoas com o sucesso do seu trabalho, ou seja, com a reconquista da minha saúde.

Cada intenção e gesto de lembrança, carinho e cuidado dos amigos e da família também acendeu em mim essa vontade de retribuição. Esse desejo de que a minha cura venha a ser um alívio, ainda que modesto, um sinal de esperança da vitória da vida sobre a morte, da saúde sobre a doença, em tempos de estatísticas mórbidas tão tenebrosas.

Foi uma alegria receber aqui uma carta manuscrita da minha filha Mariana em declaração do seu amor, um pequeno terço com a oração de Oxum enviado pelo amigo Raul. O livro Palavrador – A Dor Reescrita pelas Mãos da Arte, enviado por minha irmã Martha Máiran, da niteroiense Tiene Decacche, reacendeu meu amor pela leitura, pela poesia, pela vontade de escrever, de reescrever de novas formas algumas velhas e carcomidas histórias. Cada mensagem aqui nas redes, cada telefonema, cada gesto de amizade e amor, a voz dos meus familiares, de amigos alguns de todas as horas e outros há décadas sem contato, tudo tem contribuído pra minha cura e pra minha reconciliação com o mundo, num processo sem expectativas mirabolantes.

Escolhi não ver TV e evitar noticiário. Consegui manter a terapia/ esquizoanálise com a Gabi e o mindfulness com a Amanda. Isso também ajuda muito.

Fiz uma busca na Netflix por filmes e séries que pudessem me ajudar na minha conexão comigo mesma e com o universo. Recomendo, em especial, nesta ordem, por enquanto: Em Busca do Bem Estar; I Am – O que eu Posso Fazer para Mudar o Mundo; Professor Polvo; A Era dos Dados (surpreendente até o final). Curiosamente, no conjunto, esse conteúdo fez sentido. Vi que não estou sozinha na minha busca existencial por uma vida que não seja alienada, que não represente morte em vida, que seja fiel a minha essência, que dê sentido a minha passagem por este mundo, que não fique à reboque de uma agenda imposta por um modelo de mundo que se esgotou, que entrou em colapso, que não nos serve mais.

Salvo erro de contas, estou no meu 12° dia de internação. Ontem, pela primeira vez, a taxa de uma enzima no sangue que destrói os tecidos nos meus pulmões desceu em vez de subir. Creio estar perto da alta, a caminho da cura.

Em breve devo dar notícias de minha alta. Lido com isso com alguma ansiedade. Como será sair deste casulo? Como será daqui pra frente? Não sei como vai ser quando eu sair daqui, mas sei que nada poderá ser como antes. Vou precisar da ajuda e da inspiração dos mestres.

Só sei que no mundo quero me juntar às gentes e à natureza que ainda acreditam que a vida pode ser mais, melhor, mais feliz, não só pra alguns, mas para todas as pessoas, animais, plantas, nos oceanos, florestas, montanhas, desertos, geleiras, vulcões. Vou querer ser e estar onde houver amor e puder amar. Quem aceita o convite?

.* Paula Mairan é jornalista no Rio de Janeiro.

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